“Caro
Porfírio Silva, este livro nasceu do sonho de dar voz aos socialmente mudos.
Meu desejo é que ele nos inspire na busca permanente da verdade e da justiça”.
Daniela Arbex
O choque foi nos dado
por Daniela Arbex, uma das jornalistas brasileiras mais premiadas da sua
geração: «Milhares de crianças, mulheres e homens foram violentamente
torturados e mortos no hospício de Colónia, em Barbacena, fundado em 1903. A
maioria foi internada sem diagnóstico de doença mental: eram meninas violadas
que engravidaram dos patrões, homossexuais, epilépticos, mulheres que os
maridos não queriam mais, alcoólicos, prostitutas. Ou simplesmente seres
humanos em profunda tristeza. Sem documentos, sem roupa e sem destino,
tornaram-se filhos de ninguém». Nestas poucas linhas, em jeito de sinopse, dá
para perceber a dimensão da vida e do genocídio das cerca de sessenta mil
mortes, ocorridas no maior hospício do Brasil.
O papel e conduta
ontológico-exemplar de Daniela Arbex, repórter especial do jornal Tribuna de Minas há dezoito anos, uma
repórter que luta contra o esquecimento, e que tem no currículo mais de vinte
prémios nacionais e internacionais, entre eles três prémios Esso, o mais
recente recebido em 2012 com a série «Holocausto Brasileiro» – e que ora dá
título ao livro –, dois prémios Vladimir Herzog (menção honrosa), o Knight
Internacional Journalism Award, entregue nos Estados Unidos (2010), e o prémio
IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina e Caribe
(Transparência Internacional e Instituto Prensa y Sociedad), recebido por ela
em 2009, quando foi a vencedora, e 2012 (menção honrosa). Em 2002, foi premiada
na Europa com Natali Prize (menção honrosa), transforma em palavra o que era
silêncio, devolvendo “nome, história e identidade àqueles que, até então, eram
registados como «Ignorados de tal». Eram um não ser.” – como nos diz Eliane
Brum, em jeito de prefácio «OS LOUCOS SOMOS NÓS», despertando-nos, ao mesmo
tempo, para a triste e trágica realidade de que “as palavras sofrem com a
banalização. Quando abusadas pelo nosso despudor, são roubadas de sentido.
Holocausto é uma palavra assim.”
Daniela Arbex, que
tivemos o grato prazer de conhecer nas “V Jornadas Internacionais de História
da Psiquiatria e Saúde Mental”, em Coimbra, através deste seu meticuloso
trabalho jornalístico, resgata do esquecimento esta chocante e macabra história
do século XX brasileiro: um genocídio feito pelas mãos do Estado, com a
conivência de médicos, funcionários e população que roubou a dignidade e a vida
às já citadas sessenta mil pessoas. Dividido em catorze capítulos, numa
abordagem bem documentada (com fotografias – imagens do horror – de Luiz
Alfredo, da revista O Cruzeiro), como
nos revela Eliane Brum, esta é a história que “Daniela Arbex desvela, documenta
e transforma em memória (…), um genocídio cometido, sistematicamente, pelo
Estado brasileiro, com a conivência de médicos, de funcionários e também da
sociedade”. Tudo isto, só por si, torna-se deveras arrepiante, mas a indignação
ou a revolta vai aumentando, à medida que vamos lendo os catorze capítulos: I –
O Pavilhão Afonso Pena, “apesar do
tamanho, o complexo não podia ser visto do lado de fora, por causa da muralha
que cercava todo o terreno. Lá dentro, a dimensão daquele espaço asperamente
cinza, tomado por prédios com janelas amplas, porém gradeadas, impressionava”;
II – Na Roda da Loucura, “fome e sede
eram sensações permanentes no local onde o esgoto que cortava os pavilhões era
fonte de água”; III – O Único Homem que
Amou o Colónia, “corre, que seu filho está nascendo. O mestre-de-obras do Colónia,
Raul Ferreira Carneiro, largou as ferramentas no chão e seguiu em direcção à
chácara do sogro, Adolfo Cisalpino de Carvalho, administrador do hospital em
1925…”; IV – A Venda de Cadáveres,
“quando os corpos começaram a não ter mais interesse para as faculdades de
medicina, que ficaram abarrotadas de cadáveres, eles foram decompostos em
ácido, na frente dos pacientes, dentro de tonéis que ficavam no pátio de
Colónia. O objectivo é que as ossadas pudessem, então, ser comercializadas”; V
– Os Meninos de Oliveira, “crianças
mantidas em berços dentro do Colónia, de onde não saiam nem para tomar sol”; VI
– A Mãe dos Meninos de Barbacena, “da
cabeleireira à dentista, muitos profissionais foram seduzidos pela causa dos
meninos de Barbacena. A comunidade, aos poucos, foi enxergando o ser humano por
trás de deficiência que os faria babar ou passar o dia balançando o corpo de
frente para trás”; VII – A Filha da
Menina de Oliveira, “Débora Aparecida Soares nasceu dentro do hospital e
foi doada ao nascer. Hoje tem vinte e sete anos”; VIII – Sobrevivendo ao Holocausto, “Tânia, a psicóloga das residências
terapêuticas, é uma das pessoas por quem eles sempre oram”; IX – Encontro, Desencontro, Reencontro,
“havia tantas mulheres caídas no chão, espalhadas pelos cantos, em meio a
fezes, que a gestante foi tomada pelo pânico”; X – A História por trás da História, “O fotógrafo da revista O Cruzeiro
Luiz Alfredo estava prestes a registar as imagens mais dramáticas da sua
carreira, embora não soubesse disso, quando se deparou com o portão de ferro
que daria acesso ao interior do Colónia, em Barbacena, naquele Abril de 1961”;
XI – Turismo com Foucault, “–
Realmente, o louco não merece nenhuma consideração. Veja este pátio cimentado.
Não há sequer uma árvore ou sombra. Os pacientes não precisam de nada, afinal,
no conceito de vocês, eles não são gente. / A resposta do psiquiatra fez o
enfermeiro emudecer”; XII – A Luta entre
o Velho e o Novo, “a medicina brasileira tem tradição de cárcere. Por isso,
a lógica da internação faz com que os recursos médicos sejam predominantemente
hospitalares, subtraindo recursos do tratamento ambulatório, comunitário,
aberto” – defendia Paulo Delgado; XIII – Tributo
às Vítimas, “vocês precisam entender que não somos tomadores de conta.
Somos cuidadores. Os doentes têm direito de retornar para a sociedade”; XIV – A Herança do Colónia, “quando o Colónia
for finalmente desactivado com a saída de todos os pacientes asilares, os
prédios do lendário manicómio poderão ganhar nova destinação em uma cidade
carente de espaços públicos”.
Terminaremos, citando
Eliane Brum: «Neste livro, Daniela Arbex
salvou do esquecimento um capítulo da história do Brasil. Agora, é preciso
lembrar. Porque a história não pode ser esquecida. Porque o holocausto ainda
não acabou». Verdade única, quando por aí há muitos holocaustos!
NOTA MÁXIMA!
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