Friday, June 20, 2014

Daniela Arbex e o Holocausto Brasileiro!...

“Caro Porfírio Silva, este livro nasceu do sonho de dar voz aos socialmente mudos. Meu desejo é que ele nos inspire na busca permanente da verdade e da justiça”.

Daniela Arbex

O choque foi nos dado por Daniela Arbex, uma das jornalistas brasileiras mais premiadas da sua geração: «Milhares de crianças, mulheres e homens foram violentamente torturados e mortos no hospício de Colónia, em Barbacena, fundado em 1903. A maioria foi internada sem diagnóstico de doença mental: eram meninas violadas que engravidaram dos patrões, homossexuais, epilépticos, mulheres que os maridos não queriam mais, alcoólicos, prostitutas. Ou simplesmente seres humanos em profunda tristeza. Sem documentos, sem roupa e sem destino, tornaram-se filhos de ninguém». Nestas poucas linhas, em jeito de sinopse, dá para perceber a dimensão da vida e do genocídio das cerca de sessenta mil mortes, ocorridas no maior hospício do Brasil.
O papel e conduta ontológico-exemplar de Daniela Arbex, repórter especial do jornal Tribuna de Minas há dezoito anos, uma repórter que luta contra o esquecimento, e que tem no currículo mais de vinte prémios nacionais e internacionais, entre eles três prémios Esso, o mais recente recebido em 2012 com a série «Holocausto Brasileiro» – e que ora dá título ao livro –, dois prémios Vladimir Herzog (menção honrosa), o Knight Internacional Journalism Award, entregue nos Estados Unidos (2010), e o prémio IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina e Caribe (Transparência Internacional e Instituto Prensa y Sociedad), recebido por ela em 2009, quando foi a vencedora, e 2012 (menção honrosa). Em 2002, foi premiada na Europa com Natali Prize (menção honrosa), transforma em palavra o que era silêncio, devolvendo “nome, história e identidade àqueles que, até então, eram registados como «Ignorados de tal». Eram um não ser.” – como nos diz Eliane Brum, em jeito de prefácio «OS LOUCOS SOMOS NÓS», despertando-nos, ao mesmo tempo, para a triste e trágica realidade de que “as palavras sofrem com a banalização. Quando abusadas pelo nosso despudor, são roubadas de sentido. Holocausto é uma palavra assim.”


Daniela Arbex, que tivemos o grato prazer de conhecer nas “V Jornadas Internacionais de História da Psiquiatria e Saúde Mental”, em Coimbra, através deste seu meticuloso trabalho jornalístico, resgata do esquecimento esta chocante e macabra história do século XX brasileiro: um genocídio feito pelas mãos do Estado, com a conivência de médicos, funcionários e população que roubou a dignidade e a vida às já citadas sessenta mil pessoas. Dividido em catorze capítulos, numa abordagem bem documentada (com fotografias – imagens do horror – de Luiz Alfredo, da revista O Cruzeiro), como nos revela Eliane Brum, esta é a história que “Daniela Arbex desvela, documenta e transforma em memória (…), um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, de funcionários e também da sociedade”. Tudo isto, só por si, torna-se deveras arrepiante, mas a indignação ou a revolta vai aumentando, à medida que vamos lendo os catorze capítulos: I – O Pavilhão Afonso Pena, “apesar do tamanho, o complexo não podia ser visto do lado de fora, por causa da muralha que cercava todo o terreno. Lá dentro, a dimensão daquele espaço asperamente cinza, tomado por prédios com janelas amplas, porém gradeadas, impressionava”; II – Na Roda da Loucura, “fome e sede eram sensações permanentes no local onde o esgoto que cortava os pavilhões era fonte de água”; III – O Único Homem que Amou o Colónia, “corre, que seu filho está nascendo. O mestre-de-obras do Colónia, Raul Ferreira Carneiro, largou as ferramentas no chão e seguiu em direcção à chácara do sogro, Adolfo Cisalpino de Carvalho, administrador do hospital em 1925…”; IV – A Venda de Cadáveres, “quando os corpos começaram a não ter mais interesse para as faculdades de medicina, que ficaram abarrotadas de cadáveres, eles foram decompostos em ácido, na frente dos pacientes, dentro de tonéis que ficavam no pátio de Colónia. O objectivo é que as ossadas pudessem, então, ser comercializadas”; V – Os Meninos de Oliveira, “crianças mantidas em berços dentro do Colónia, de onde não saiam nem para tomar sol”; VI – A Mãe dos Meninos de Barbacena, “da cabeleireira à dentista, muitos profissionais foram seduzidos pela causa dos meninos de Barbacena. A comunidade, aos poucos, foi enxergando o ser humano por trás de deficiência que os faria babar ou passar o dia balançando o corpo de frente para trás”; VII – A Filha da Menina de Oliveira, “Débora Aparecida Soares nasceu dentro do hospital e foi doada ao nascer. Hoje tem vinte e sete anos”; VIII – Sobrevivendo ao Holocausto, “Tânia, a psicóloga das residências terapêuticas, é uma das pessoas por quem eles sempre oram”; IX – Encontro, Desencontro, Reencontro, “havia tantas mulheres caídas no chão, espalhadas pelos cantos, em meio a fezes, que a gestante foi tomada pelo pânico”; X – A História por trás da História, “O fotógrafo da revista O Cruzeiro Luiz Alfredo estava prestes a registar as imagens mais dramáticas da sua carreira, embora não soubesse disso, quando se deparou com o portão de ferro que daria acesso ao interior do Colónia, em Barbacena, naquele Abril de 1961”; XI – Turismo com Foucault, “– Realmente, o louco não merece nenhuma consideração. Veja este pátio cimentado. Não há sequer uma árvore ou sombra. Os pacientes não precisam de nada, afinal, no conceito de vocês, eles não são gente. / A resposta do psiquiatra fez o enfermeiro emudecer”; XII – A Luta entre o Velho e o Novo, “a medicina brasileira tem tradição de cárcere. Por isso, a lógica da internação faz com que os recursos médicos sejam predominantemente hospitalares, subtraindo recursos do tratamento ambulatório, comunitário, aberto” – defendia Paulo Delgado; XIII – Tributo às Vítimas, “vocês precisam entender que não somos tomadores de conta. Somos cuidadores. Os doentes têm direito de retornar para a sociedade”; XIV – A Herança do Colónia, “quando o Colónia for finalmente desactivado com a saída de todos os pacientes asilares, os prédios do lendário manicómio poderão ganhar nova destinação em uma cidade carente de espaços públicos”.


Terminaremos, citando Eliane Brum: «Neste livro, Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo da história do Brasil. Agora, é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida. Porque o holocausto ainda não acabou». Verdade única, quando por aí há muitos holocaustos!                           
          NOTA MÁXIMA!

No comments: