«Talvez João Tordo seja um escritor
existencial, já que esta antiga palavra engloba simultaneamente os aspectos
espirituais, sociais e materiais da realidade…»
Miguel Real
Recorrente da brilhante
iniciativa da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, «À conversa com…», de
trazer até nós um dos escritores portugueses (a par de outros, mas muito poucos…)
com quem mais nos identificamos, João Tordo, eis que damos conta da nossa
habitual empatia por tudo o que escreve, deixando-nos seduzir, mais uma (e
desta) vez, pelo seu último romance «Biografia
involuntária dos amantes».
Para os menos atentos,
convenhamos em lembrar que João Tordo, aliado ao facto da circunstancial consanguinidade,
por ser filho do cantor Fernando Tordo (sem que isso possa constituir qualquer
tipo de condicionante ou sombra à sua excepcional e nata criatividade), nasceu
na cidade das sete colinas, Olisipo de
Tagus, em 28 de Agosto de 1975. Formou-se em Filosofia pela Universidade
Nova de Lisboa e trabalhou como freelancer
em vários jornais. Estudou Jornalismo e Escrita Criativa em Londres e Nova
Iorque, onde viveu intensamente e cultivou a sua “memória selectiva”, como costuma
dizer. Foi vencedor do Prémio José Saramago 2009 com o romance «As Três Vidas» (2008) depois de, em
2001, ter vencido o prémio Jovens Criadores na categoria de Literatura. Foi
finalista do prémio Melhor Livro de Ficção Narrativa da Sociedade Portuguesa de
Autores em 2011 com o romance «O Bom
Inverno» (2010), do Prémio Portugal Telecom 2011 com «As Três Vidas», publicado no Brasil, e ainda do Prémio Fernando
Namora com «Anatomia dos Mártires». Trabalha
como cronista, tradutor, formador em workshops
de ficção dedicados à Escrita Criativa e ao Romance, e guionista, onde
participou em várias séries de televisão, incluindo «O Segredo de Miguel Zuzarte» (RTP), «4» (RTP) e «Liberdade XXI»
(RTP). Para além de ter participação em diversas antologias literárias, publicou
sete romances, alguns dos quais estão traduzidos em diversos países, nomeadamente
em França, Itália, Brasil, Sérvia e Croácia: «O Livro dos Homens Sem Luz» (2004), «Hotel Memória» (2007), «As
Três Vidas» (2009), «O Bom Inverno»
(2010), «Anatomia dos Mártires» (2011),
«O Ano Sabático» (2013) e,
finalmente, «Biografia involuntária dos
amantes» (2014), livro esse que serviu de mote a mais dedos de conversa, na
última sexta-feira, 14 de Novembro do corrente ano.
Em «Biografia involuntária dos amantes»,
tudo começa numa estrada (AP-9) adormecida da Galiza, onde dois homens
atropelam um javali: Mas o animal
atravessou-se no nosso caminho, correu para o desastre e destruiu o
pára-choques do carro, projectando fragmentos de si próprio, satélites
desgovernados em torno de dois sóis que eram as luzes dianteiras. O focinho
bifurcado do mamífero explodiu de sangue… (p.13). “A visão do animal morto
na estrada levará um deles — Saldaña Paris, um jovem poeta mexicano de olhos
azuis inquietos — a puxar o primeiro fio do novelo da sua vida. Instigado pelas
confissões desconjuntadas do poeta, o seu companheiro de viagem — um professor
universitário divorciado — irá tentar descobrir o que está por trás da
persistente melancolia de Saldaña Paris. A viagem de descoberta começa com a
leitura de um manuscrito da autoria da ex-mulher do mexicano, Teresa, que
morreu há pouco tempo e marcou a vida do poeta como um ferro em brasa. O
narrador não poderia adivinhar (porque nunca podemos saber as verdadeiras
consequências dos nossos actos) que a leitura desse manuscrito teria o mesmo
efeito sobre a sua vida. As páginas escritas por Teresa revelam a sua
adolescência no seio de uma família portuguesa contaminada pela desilusão: um
pai ausente e alcoólico, um tio aventureiro e misterioso, uma mãe demasiado
protectora” – podemos ler em sinopse.
João Tordo, é a
primeira vez que tem uma narradora no feminino – Chamo-me Teresa de Sousa Inútil. O segundo apelido é inventado. Esta
história que vou contar é sobre o meu tio e é também sobre mim, embora os
narradores muitas vezes se escondem por trás de outras pessoas, como Alice se
escondeu por trás de um espelho (p. 109) –, o que, na nossa modesta
opinião, se reflecte numa tentativa do autor em passar para o outro lado do
espelho, por forma a ultrapassar a dificuldade em compreender o ser humano do
ponto de vista masculino. E é o próprio João Tordo que nos revela esse mesmo
inquietante desafio, quando, numa entrevista a Luís Ricardo Duarte (JL),
imprimiu o lado feminino, ao sentir uma grande intimidade com a Teresa: “A
prosa engrenou (…). Há até alguns pormenores que saltam à vista. Essa parte tem
uma linguagem diferente, uma cadência mais pausada, outra pontuação…” – corroboramos
com as palavras do autor, porque foi isso que sentimos. Mesmo permitindo-se a
correr riscos, João Tordo – quiçá, o Jaime de Teresa (Sei que o olhei com a certeza de que aquele rapaz gago, tímido e
desajeitado seria o meu único amor verdadeiro. Nenhum de nós, até àquele dia,
sequer provara uma cerveja ou um beijo) – arriscou em sair da sua zona de
conforto. Intimidades femininas, são sempre intimidades femininas: A única pessoa a quem contei que o meu pai
aparecera na televisão e no jornal foi a Julieta, a primeira rapariga da nossa
turma a quem apareceu a menstruação. Na altura, era a minha única amiga. Eu
detestava as raparigas. Odiava os risinhos de escárnio, desprezava os
grupinhos, evitava as conversas no balneário do ginásio. No primeiro ano
naquela escola, uma das nossas colegas descobriu um penso higiénico na mochila
da Julieta (p. 121), em tempos em que se cheirava a pastilhas Gorila, a tabaco, a after-shave, a suor, a ranço, “a sexo (alguns cheiravam a sexo) e, pior
do que todas essas coisas, a perfume”.
“A vida adulta”, “o
manuscrito de Bríon”, “o tempo peleja contra os seus lírios e as suas rosas”, “dezoito”
– Guardei o manuscrito numa gaveta do
quarto de Andrea e prometi não voltar a tocar-lhe. Supersticiosamente, tapei-o
com a roupa de infância da minha filha, como se assim pudesse estancar o mal
que aquelas páginas tinham feito (p. 225) –, “o eco dos fantasmas no
papel”, “o grito dos velhos terrores”, e “a sombra dos nossos passos”, são
percursos (capitulares), desvelando o passado, para que este não contamine
irremediavelmente o futuro. A nosso ver, à semelhança do «Ano Sabático», João Tordo tenta perceber até que ponto é possível
colocar-se no lugar do “Outro”, através de lugares e emoções comuns a qualquer
um de nós. No fundo, uma viagem “filosófica”, onde “continuamos a procurar um
sentido para as coisas; quão longa essa quimera, quão árduo esse caminho em
busca de uma resposta. Talvez essa resposta seja como no sonho de Saldaña
Paris: um lugar em que se flutua. Sim, é possível que seja isto: uma incógnita
ou um sem-número de possibilidades, todas inatingíveis; a tal sístole poderosa
que nos esmaga e depois nos dispara em todas as direcções até aos confins do
espaço” (p. 415). Aqui fica o convite: «Agora entramos». Sim, a entrarem na «Biografia involuntária dos amantes»,
dado que há muito mais para revelar.
Um autor que se
recomenda.
NOTA MÁXIMA!
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