Friday, November 21, 2014

«Biografia involuntária dos amantes», a procura do “Outro” em João Tordo!...

«Talvez João Tordo seja um escritor existencial, já que esta antiga palavra engloba simultaneamente os aspectos espirituais, sociais e materiais da realidade…»

Miguel Real

Recorrente da brilhante iniciativa da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, «À conversa com…», de trazer até nós um dos escritores portugueses (a par de outros, mas muito poucos…) com quem mais nos identificamos, João Tordo, eis que damos conta da nossa habitual empatia por tudo o que escreve, deixando-nos seduzir, mais uma (e desta) vez, pelo seu último romance «Biografia involuntária dos amantes».


Para os menos atentos, convenhamos em lembrar que João Tordo, aliado ao facto da circunstancial consanguinidade, por ser filho do cantor Fernando Tordo (sem que isso possa constituir qualquer tipo de condicionante ou sombra à sua excepcional e nata criatividade), nasceu na cidade das sete colinas, Olisipo de Tagus, em 28 de Agosto de 1975. Formou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e trabalhou como freelancer em vários jornais. Estudou Jornalismo e Escrita Criativa em Londres e Nova Iorque, onde viveu intensamente e cultivou a sua “memória selectiva”, como costuma dizer.  Foi vencedor do Prémio José Saramago 2009 com o romance «As Três Vidas» (2008) depois de, em 2001, ter vencido o prémio Jovens Criadores na categoria de Literatura. Foi finalista do prémio Melhor Livro de Ficção Narrativa da Sociedade Portuguesa de Autores em 2011 com o romance «O Bom Inverno» (2010), do Prémio Portugal Telecom 2011 com «As Três Vidas», publicado no Brasil, e ainda do Prémio Fernando Namora com «Anatomia dos Mártires». Trabalha como cronista, tradutor, formador em workshops de ficção dedicados à Escrita Criativa e ao Romance, e guionista, onde participou em várias séries de televisão, incluindo «O Segredo de Miguel Zuzarte» (RTP), «4» (RTP) e «Liberdade XXI» (RTP). Para além de ter participação em diversas antologias literárias, publicou sete romances, alguns dos quais estão traduzidos em diversos países, nomeadamente em França, Itália, Brasil, Sérvia e Croácia: «O Livro dos Homens Sem Luz» (2004), «Hotel Memória» (2007), «As Três Vidas» (2009), «O Bom Inverno» (2010), «Anatomia dos Mártires» (2011), «O Ano Sabático» (2013) e, finalmente, «Biografia involuntária dos amantes» (2014), livro esse que serviu de mote a mais dedos de conversa, na última sexta-feira, 14 de Novembro do corrente ano.


Em «Biografia involuntária dos amantes», tudo começa numa estrada (AP-9) adormecida da Galiza, onde dois homens atropelam um javali: Mas o animal atravessou-se no nosso caminho, correu para o desastre e destruiu o pára-choques do carro, projectando fragmentos de si próprio, satélites desgovernados em torno de dois sóis que eram as luzes dianteiras. O focinho bifurcado do mamífero explodiu de sangue… (p.13). “A visão do animal morto na estrada levará um deles — Saldaña Paris, um jovem poeta mexicano de olhos azuis inquietos — a puxar o primeiro fio do novelo da sua vida. Instigado pelas confissões desconjuntadas do poeta, o seu companheiro de viagem — um professor universitário divorciado — irá tentar descobrir o que está por trás da persistente melancolia de Saldaña Paris. A viagem de descoberta começa com a leitura de um manuscrito da autoria da ex-mulher do mexicano, Teresa, que morreu há pouco tempo e marcou a vida do poeta como um ferro em brasa. O narrador não poderia adivinhar (porque nunca podemos saber as verdadeiras consequências dos nossos actos) que a leitura desse manuscrito teria o mesmo efeito sobre a sua vida. As páginas escritas por Teresa revelam a sua adolescência no seio de uma família portuguesa contaminada pela desilusão: um pai ausente e alcoólico, um tio aventureiro e misterioso, uma mãe demasiado protectora” – podemos ler em sinopse.
João Tordo, é a primeira vez que tem uma narradora no feminino – Chamo-me Teresa de Sousa Inútil. O segundo apelido é inventado. Esta história que vou contar é sobre o meu tio e é também sobre mim, embora os narradores muitas vezes se escondem por trás de outras pessoas, como Alice se escondeu por trás de um espelho (p. 109) –, o que, na nossa modesta opinião, se reflecte numa tentativa do autor em passar para o outro lado do espelho, por forma a ultrapassar a dificuldade em compreender o ser humano do ponto de vista masculino. E é o próprio João Tordo que nos revela esse mesmo inquietante desafio, quando, numa entrevista a Luís Ricardo Duarte (JL), imprimiu o lado feminino, ao sentir uma grande intimidade com a Teresa: “A prosa engrenou (…). Há até alguns pormenores que saltam à vista. Essa parte tem uma linguagem diferente, uma cadência mais pausada, outra pontuação…” – corroboramos com as palavras do autor, porque foi isso que sentimos. Mesmo permitindo-se a correr riscos, João Tordo – quiçá, o Jaime de Teresa (Sei que o olhei com a certeza de que aquele rapaz gago, tímido e desajeitado seria o meu único amor verdadeiro. Nenhum de nós, até àquele dia, sequer provara uma cerveja ou um beijo) – arriscou em sair da sua zona de conforto. Intimidades femininas, são sempre intimidades femininas: A única pessoa a quem contei que o meu pai aparecera na televisão e no jornal foi a Julieta, a primeira rapariga da nossa turma a quem apareceu a menstruação. Na altura, era a minha única amiga. Eu detestava as raparigas. Odiava os risinhos de escárnio, desprezava os grupinhos, evitava as conversas no balneário do ginásio. No primeiro ano naquela escola, uma das nossas colegas descobriu um penso higiénico na mochila da Julieta (p. 121), em tempos em que se cheirava a pastilhas Gorila, a tabaco, a after-shave, a suor, a ranço, “a sexo (alguns cheiravam a sexo) e, pior do que todas essas coisas, a perfume”.  
“A vida adulta”, “o manuscrito de Bríon”, “o tempo peleja contra os seus lírios e as suas rosas”, “dezoito” – Guardei o manuscrito numa gaveta do quarto de Andrea e prometi não voltar a tocar-lhe. Supersticiosamente, tapei-o com a roupa de infância da minha filha, como se assim pudesse estancar o mal que aquelas páginas tinham feito (p. 225) –, “o eco dos fantasmas no papel”, “o grito dos velhos terrores”, e “a sombra dos nossos passos”, são percursos (capitulares), desvelando o passado, para que este não contamine irremediavelmente o futuro. A nosso ver, à semelhança do «Ano Sabático», João Tordo tenta perceber até que ponto é possível colocar-se no lugar do “Outro”, através de lugares e emoções comuns a qualquer um de nós. No fundo, uma viagem “filosófica”, onde “continuamos a procurar um sentido para as coisas; quão longa essa quimera, quão árduo esse caminho em busca de uma resposta. Talvez essa resposta seja como no sonho de Saldaña Paris: um lugar em que se flutua. Sim, é possível que seja isto: uma incógnita ou um sem-número de possibilidades, todas inatingíveis; a tal sístole poderosa que nos esmaga e depois nos dispara em todas as direcções até aos confins do espaço” (p. 415). Aqui fica o convite: «Agora entramos». Sim, a entrarem na «Biografia involuntária dos amantes», dado que há muito mais para revelar.
Um autor que se recomenda.  
         NOTA MÁXIMA!

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