«…Ainda que não me veja muito conveniente
remexer neste assunto, acabei por perder algum do meu precioso tempo morto a
cogitar a possibilidade de algum dos meus agiotas ser impiedoso e cruel ao
ponto de ter assassinado Soraya.»
Manuel Jorge Marmelo
À conversa com… é uma iniciativa da Biblioteca Municipal de Viana
do Castelo, que visa promover, em torno do livro, o diálogo e a troca de
conhecimentos com escritores contemporâneos, proporcionando a oportunidade de
conviver de perto com os autores e a sua obra. Com a mesma iniciativa, que
embrionariamente remonta a Outubro de 2009, cujo primeiro convidado foi o
escritor angolano Luandino Vieira, pretende-se que seja um espaço de incentivo
à leitura, de divulgação das obras dos autores da actualidade, de promoção da
cultura e do conhecimento, e, sobretudo, de interacção entre o público leitor e
os escritores.
Na última sexta-feira,
31 de Outubro, dia em que se prestou uma singela homenagem ao Professor José
Bento (1951-2014), membro do Clube de Leitura da mesma Biblioteca Municipal, e
que nos deixou órfãos no corrente ano – «À volta da mesa seremos sempre
dezoito», numa alusão clara à memória de José Bento, como um dos dezoito
membros do Clube de Leitura, num texto escrito e lido por Carlos Ponte: (…) E quando a fome e o cansaço nos vencerem,
sentámo-nos à mesa. E no fim, os dezoito, porque à volta da mesa seremos sempre
dezoito, de pé, com o melhor vinho ribeiro das fráguas galegas, brindaremos à
amizade que nos une, à vida e aos livros –, o convidado foi o escritor Manuel
Jorge Marmelo, nascido na cidade do Porto em 1971. Jornalista deste 1989,
estreou-se na literatura em 1996, com o livro «O Homem Que Julgou Morrer de Amor». Com mais de vinte títulos
publicados, a sua criatividade literária passa pelos romances, crónicas, livros
infantis e contos. Conquistou, em 2005, o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo
Branco com o livro «O Silêncio de um
Homem Só» e, no corrente ano (2014), foi galardoado com Prémio Correntes
d’Escritas/Casino da Póvoa, pelo romance «Uma
Mentira Mil Vezes Repetida». Manuel Jorge Marmelo tem participado em várias
publicações e antologias, e, desde Julho de 2001, o seu nome consta do
“Dicionário de Personalidades Portuenses do Século XX”, da Porto Editora, sendo
o mais jovem dos nomes biografados.
Naquele dia, o mote
para dois dedos de conversa foi o seu mais recente romance «O Tempo Morto é Um Bom Lugar» onde, segundo
a crítica, se misturam vários géneros literários, desde o policial à
autobiografia, rejeitando-se uma ligação umbilical a qualquer um deles. É um
livro feito de pontas soltas, dividido em três partes, onde o leitor tem o
papel decisivo de deslindar os mistérios que surgem nas suas páginas e que são,
felizmente, muitos.
Sem nos enredarmos em
grandes considerações crítico-literárias, dado que não é esse o nosso
propósito, apenas diremos que o trama deste extraordinário livro gira à volta
de Herculano Vermelho, um jornalista desempregado que um dia acorda ao lado do
cadáver de Soraya, «uma inquietação com pernas» e estrela televisiva de um
qualquer reality show, de quem
aceitou tornar-se ghost writer para
escrever uma autobiografia. Herculano não tem memória de nada, mas entrega-se à
polícia como se a ida para a prisão fosse um desígnio pessoal a cumprir,
vivendo o tempo morto da prisão com uma grande dose de alegria, num lugar onde
não há contas para pagar, não existem apresentações periódicas obrigatórias no
centro de emprego e não se sentem pressões de qualquer espécie de uma ex-mulher
que, ainda assim, sempre mostrou ter paciência de santa. É ele – será mesmo? –
que nos conta, na primeira pessoa, o primeiro andamento do livro: Antes de ter ficado desempregado não
costumava lembrar-me do que acontecia nos sonhos, ou então, é o mais certo,
tinha outras coisas em que pensar e acabava por esquecê-los sem lhes atribuir
qualquer importância (p. 45) …Egoísta
e indiferente a quase tudo, assalta-me frequentemente a ideia, agora não tão
absurda quanto isso, de que posso transformar-me – enquanto envelheço, ou
quando sair da prisão, que não há-de durar para sempre – numa daquelas pessoas
que morrem solitárias e rodeadas apenas pelo silêncio dos seus gatos (p.
49). É na prisão que a sua avaliação psiquiátrica é inconclusiva e que conclui
que o país está endividado e dependente de ajuda externa para pagar as quantias
absurdas de fundos públicos, transferidos para os bolsos de empresas,
consórcios e fundações assessoradas por advogados e economistas, messias que
nos garantiam estar a agir no melhor interesse dos cidadãos. É este o recluso
que se sente incapaz de reconstruir o fio das conversas com a Soraya, numa
dicotomia entre a memória e a imaginação, com noites de atormentadas insónias,
impressas a giz no quadro negro de lousa ou a esferográfica Bic: Quando
durmo mal, o que acontece quase sempre, desperto muito cedo no silêncio duro da
minha cela e fico a lembrar-me da crioulinha (p. 65). Um paralelo entre o
desempregado e o presidiário? – uma interrogação que colocamos, a pretexto de
eventuais detectáveis alegorias filosóficas.
A segunda parte é a
surpreendente autobiografia de Soraya, um relato fantasmagórico de um narrador
não identificado, que nos conta a breve história de ascensão e queda de uma
linda mulher que, por detrás de um belo corpinho, esconde muito mais do que a
aparente futilidade: Todas as minhas
recordações de infância são imprecisas. Nelas a terra tem um tom entre o
castanho e o cinzento, áspero, que se infiltra e contamina as memórias que me
restam. Tudo o que me lembro está submerso no sépia suave daquele pó de ilha
nua (p. 140); Estar na televisão
assemelha-se a mudar de país (p. 143); Agora
que penso nisso, é irónico que a Maria tenha sido a única a quem a escola
serviu para alguma coisa. Tirou o curso de advogada e tem um emprego num banco (p.
147) – sentido estético de uma ironia refinada, que Manuel Jorge Marmelo nos
leva a uma escrita criativa da mais apurada mestria, onde, no dizer de Ana Dias
Ferreira, se pressentem jogos literários e artifícios que permitem elevar tudo
acima da mundanidade: Máscara por cima de
máscara, até à terceira parte em que se desmonta tudo, Manuel Jorge Marmelo
constrói um romance que dinamita a noção de verdade e que confirma: nem ele é
um fantasma sem voz própria, nem o prémio atribuído nas Correntes d'Escritas
foi uma aparição.
De facto, a terceira
parte pertence a João António Abelha, um jornalista veterano que, um ano depois
da morte de Soraya e com as montras repletas de exemplares de “O Segredo de
Soraya”, decide investigar por conta própria quem terá sido o autor da
fotografia da capa e, em última instância, quem será, afinal, o autor do
próprio livro: A seguir, e sem que isso
tenha surpreendido minimamente João António Abelha, Soraya e Naninha
fundiram-se num só corpo no momento em que iam cruzar-se no centro do ringue,
dando origem a uma única mulher muito bela e doce, um pouco tímida, que vestia
um fato de banho quase infantil, preto e estampado com cerejas (p.
274-275). E por aqui nos ficamos… O resto, é com os necessários e/ou
hipotéticos leitores de Manuel Jorge Marmelo. Um autor que se recomenda.
NOTA MÁXIMA!
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