Saturday, November 08, 2014

«O Tempo Morto é um Bom Lugar» com Manuel Jorge Marmelo!...

«…Ainda que não me veja muito conveniente remexer neste assunto, acabei por perder algum do meu precioso tempo morto a cogitar a possibilidade de algum dos meus agiotas ser impiedoso e cruel ao ponto de ter assassinado Soraya.»

Manuel Jorge Marmelo

À conversa com… é uma iniciativa da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, que visa promover, em torno do livro, o diálogo e a troca de conhecimentos com escritores contemporâneos, proporcionando a oportunidade de conviver de perto com os autores e a sua obra. Com a mesma iniciativa, que embrionariamente remonta a Outubro de 2009, cujo primeiro convidado foi o escritor angolano Luandino Vieira, pretende-se que seja um espaço de incentivo à leitura, de divulgação das obras dos autores da actualidade, de promoção da cultura e do conhecimento, e, sobretudo, de interacção entre o público leitor e os escritores.
Na última sexta-feira, 31 de Outubro, dia em que se prestou uma singela homenagem ao Professor José Bento (1951-2014), membro do Clube de Leitura da mesma Biblioteca Municipal, e que nos deixou órfãos no corrente ano – «À volta da mesa seremos sempre dezoito», numa alusão clara à memória de José Bento, como um dos dezoito membros do Clube de Leitura, num texto escrito e lido por Carlos Ponte: (…) E quando a fome e o cansaço nos vencerem, sentámo-nos à mesa. E no fim, os dezoito, porque à volta da mesa seremos sempre dezoito, de pé, com o melhor vinho ribeiro das fráguas galegas, brindaremos à amizade que nos une, à vida e aos livros –, o convidado foi o escritor Manuel Jorge Marmelo, nascido na cidade do Porto em 1971. Jornalista deste 1989, estreou-se na literatura em 1996, com o livro «O Homem Que Julgou Morrer de Amor». Com mais de vinte títulos publicados, a sua criatividade literária passa pelos romances, crónicas, livros infantis e contos. Conquistou, em 2005, o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco com o livro «O Silêncio de um Homem Só» e, no corrente ano (2014), foi galardoado com Prémio Correntes d’Escritas/Casino da Póvoa, pelo romance «Uma Mentira Mil Vezes Repetida». Manuel Jorge Marmelo tem participado em várias publicações e antologias, e, desde Julho de 2001, o seu nome consta do “Dicionário de Personalidades Portuenses do Século XX”, da Porto Editora, sendo o mais jovem dos nomes biografados.


Naquele dia, o mote para dois dedos de conversa foi o seu mais recente romance «O Tempo Morto é Um Bom Lugar» onde, segundo a crítica, se misturam vários géneros literários, desde o policial à autobiografia, rejeitando-se uma ligação umbilical a qualquer um deles. É um livro feito de pontas soltas, dividido em três partes, onde o leitor tem o papel decisivo de deslindar os mistérios que surgem nas suas páginas e que são, felizmente, muitos.
Sem nos enredarmos em grandes considerações crítico-literárias, dado que não é esse o nosso propósito, apenas diremos que o trama deste extraordinário livro gira à volta de Herculano Vermelho, um jornalista desempregado que um dia acorda ao lado do cadáver de Soraya, «uma inquietação com pernas» e estrela televisiva de um qualquer reality show, de quem aceitou tornar-se ghost writer para escrever uma autobiografia. Herculano não tem memória de nada, mas entrega-se à polícia como se a ida para a prisão fosse um desígnio pessoal a cumprir, vivendo o tempo morto da prisão com uma grande dose de alegria, num lugar onde não há contas para pagar, não existem apresentações periódicas obrigatórias no centro de emprego e não se sentem pressões de qualquer espécie de uma ex-mulher que, ainda assim, sempre mostrou ter paciência de santa. É ele – será mesmo? – que nos conta, na primeira pessoa, o primeiro andamento do livro: Antes de ter ficado desempregado não costumava lembrar-me do que acontecia nos sonhos, ou então, é o mais certo, tinha outras coisas em que pensar e acabava por esquecê-los sem lhes atribuir qualquer importância (p. 45) …Egoísta e indiferente a quase tudo, assalta-me frequentemente a ideia, agora não tão absurda quanto isso, de que posso transformar-me – enquanto envelheço, ou quando sair da prisão, que não há-de durar para sempre – numa daquelas pessoas que morrem solitárias e rodeadas apenas pelo silêncio dos seus gatos (p. 49). É na prisão que a sua avaliação psiquiátrica é inconclusiva e que conclui que o país está endividado e dependente de ajuda externa para pagar as quantias absurdas de fundos públicos, transferidos para os bolsos de empresas, consórcios e fundações assessoradas por advogados e economistas, messias que nos garantiam estar a agir no melhor interesse dos cidadãos. É este o recluso que se sente incapaz de reconstruir o fio das conversas com a Soraya, numa dicotomia entre a memória e a imaginação, com noites de atormentadas insónias, impressas a giz no quadro negro de lousa ou a esferográfica Bic: Quando durmo mal, o que acontece quase sempre, desperto muito cedo no silêncio duro da minha cela e fico a lembrar-me da crioulinha (p. 65). Um paralelo entre o desempregado e o presidiário? – uma interrogação que colocamos, a pretexto de eventuais detectáveis alegorias filosóficas.


A segunda parte é a surpreendente autobiografia de Soraya, um relato fantasmagórico de um narrador não identificado, que nos conta a breve história de ascensão e queda de uma linda mulher que, por detrás de um belo corpinho, esconde muito mais do que a aparente futilidade: Todas as minhas recordações de infância são imprecisas. Nelas a terra tem um tom entre o castanho e o cinzento, áspero, que se infiltra e contamina as memórias que me restam. Tudo o que me lembro está submerso no sépia suave daquele pó de ilha nua (p. 140); Estar na televisão assemelha-se a mudar de país (p. 143); Agora que penso nisso, é irónico que a Maria tenha sido a única a quem a escola serviu para alguma coisa. Tirou o curso de advogada e tem um emprego num banco (p. 147) – sentido estético de uma ironia refinada, que Manuel Jorge Marmelo nos leva a uma escrita criativa da mais apurada mestria, onde, no dizer de Ana Dias Ferreira, se pressentem jogos literários e artifícios que permitem elevar tudo acima da mundanidade: Máscara por cima de máscara, até à terceira parte em que se desmonta tudo, Manuel Jorge Marmelo constrói um romance que dinamita a noção de verdade e que confirma: nem ele é um fantasma sem voz própria, nem o prémio atribuído nas Correntes d'Escritas foi uma aparição.
De facto, a terceira parte pertence a João António Abelha, um jornalista veterano que, um ano depois da morte de Soraya e com as montras repletas de exemplares de “O Segredo de Soraya”, decide investigar por conta própria quem terá sido o autor da fotografia da capa e, em última instância, quem será, afinal, o autor do próprio livro: A seguir, e sem que isso tenha surpreendido minimamente João António Abelha, Soraya e Naninha fundiram-se num só corpo no momento em que iam cruzar-se no centro do ringue, dando origem a uma única mulher muito bela e doce, um pouco tímida, que vestia um fato de banho quase infantil, preto e estampado com cerejas (p. 274-275). E por aqui nos ficamos… O resto, é com os necessários e/ou hipotéticos leitores de Manuel Jorge Marmelo. Um autor que se recomenda.

NOTA MÁXIMA!   

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