«Uma escrita envolvente, colorida pelo pendor
adjectivante e pela incorporação do falar comum, serve a preceito o universo
rural das oito estórias deste Retábulo tão cheio de matizes, sortilégios e
malícias, ironia, sugestividade»
José Manuel Mendes
Com esta avalista
apreciação crítico-literária de José Manuel Mendes, Presidente da Associação
Portuguesa de Escritores, conceituado escritor e ilustre professor da
Universidade do Minho, a nossa tarefa de inveterado leitor, acrescida do
circunstancial atrevimento, porque a isso ninguém nos obriga, de passar para o
papel a nossa opinião, a propósito de tudo o que Fernando Pinheiro tem
produzido a nível literário até hoje, apresenta-se extremamente facilitada,
tendo em conta a alta qualidade do seu projecto narrativo, opinião partilhada
pelo mesmo José Manuel Mendes, e com a qual comungamos incondicionalmente,
quando escreve: De livro para livro,
Fernando Pinheiro enriquece e aprofunda o seu projecto narrativo. A efabulação,
nascida amiúde de um olhar atento ao quotidiano, desenha-se com crescente
argúcia e as personagens, na sua diferenciação procedimental, densificam-se.
Bebendo numa locução latina, “Ad augusta per angusta”, diremos nós.
Perguntarão os nossos
leitores: porquê toda esta retórica, quando tudo se resumirá a uma, ainda que
subjectiva, apreciação a mais um livro, dado à estampa, de Fernando Pinheiro?
De facto, não se trata de mais um, mas da 2.ª edição do seu livro de contos
«retábulo da folia», editado pela primeira vez, sob a chancela da Autores de Braga, em Fevereiro de 1994.
Dez anos depois, «RETÁBULO DA FULIA» aparece com uma nova “roupagem”, títulos e
conteúdos ligeiramente revistos e acrescentados à inspiração inicial, desta
vez, numa muito bem cuidada edição da Calígrafo.
Acresce o facto de aparecer mais um conto, em jeito de monólogo – Os maravilhosos artifícios do Pinta-Ratos
que entre outras proezas admiráveis tirou lágrimas verdadeiras aos devotos de
Nossa Senhora da Franqueira –, elaborado, segundo Fernando Pinheiro, a
partir da reportagem realizada por José de Coelho e Luís Santos, e publicada no
jornal Barcelos Popular, em 7 de Dezembro de 1996. Contudo – e dentro do nosso
princípio básico, muito pessoal, de que nada se inventa quando tudo está
inventado, circunstancialmente assente na percepção de que não devemos escrever
o que sentimos quando os outros, anteriormente, já o fizeram por nós –, teremos
em dizer que o alto quilate do projecto narrativo mantem-se: Fernando Pinheiro tem o mérito de ser,
equilibradamente, vernáculo e clássico à sua maneira, em estilo, com um
perfeito domínio da técnica que dá corpo e alma à arte do (belo) conto. É mais
uma revelação das potencialidades literárias do autor que o leitor bem pode
constatar, mesmo com um suave deste “Retábulo da Folia” (…) pinta o quadro das
alegrias e tristezas de um Minho que viveu numa “estúpida obediência” mas que,
mesmo sem escola, sabia transformar uma cana num “simplório artefacto” para
“silvos musicais tão vibrantes”. – citamos Pedro Leitão, em apontamento
crítico no JN (1994).
Pelo «Retábulo da
Folia» perpassam as mais díspares e extraordinariamente bem caracterizadas
personagens, tais como: o Domingos Pato, “o maior mentiroso das Terras de Aquém
e Além-Cávado”, que tinha o vício de “lograr o parceiro com uma laracha e duas
tretas”; o Padre Ribeiro, “entre todos o mais douto naquelas paragens”; o
senhor Joãozinho da Eira, entre todos o que “não se importava nada de cair nas
suas esparrelas, e muito mal ia a vida quando o Pato não tinha nenhuma patranha
para seu divertimento”; o Aires Manco, “que lhe disputava a Idalina Tripa, a
maior paspalhona de quantas mulheres andavam no jornal naquela casa”; o Lino da
Quitéria, “sacristão e tramboleiro de Santo Amaro do Campo”; o Baganha,
circunstancial homem da batuta, aquando debilidades várias em Lino da Quitéria;
o senhor Luís Aleluia, músico e oleiro, contramestre da Banda Musical de Santo
Amaro do Campo; o Padre Joaquim, abade de Santo Amaro do Campo; o Marechala,
“famoso tocador de descantes, rusgas e tocatas, conhecido em todo o concelho,
desde Balugães a Viatodos, como sendo homem de sete instrumentos”; o Padre Zé,
aquele que viria a casar Venturino e Isménia, “ao fim de vinte e um anos, três
meses e sete dias de namoro pegado, testemunhado por todo o povo de Parada do
Monte e pelas aldeias duas léguas ao redor, que têm o fraco costume de
coscuvilhar a vida alheia”, sendo padrinhos Fernando do Souto, chefe da Acção
Católica, e Lurdes Campeã, “ainda aparentada à noiva e zeladora do altar-mor
(naquela manhã ornamentado a gipsófila branca e cravos vermelhos), e ainda um
casal da aldeia para testemunhar”; a Isaura Pontes, dita a Gaga, assim se
chamava “por padecer de um pequeno distúrbio de linguagem, que pariu quatro
filhos cognatos”, e o pai de seus filhos, Samuel Cachapa, “tão rapidamente
entrou na história como saiu dela, pois limitou-se a emprenhar a mulher quatro
vezes e a morrer logo depois com os pulmões podres e os fígados inchados”; o
Patrocínio Cachapa, filho de Samuel e da Gaga, “o quarto da geração, que herdou
do falecido o gosto pela água e o mau sangue”; o Padre Alberto e a Glória
Catequista; o José Videira, lavrador, “da muito conhecida Casa da Presa, a mais
de uma légua de distância de S. Salvador da Ribeira”; o Domingos Capador, “o
mais célebre rei das tabernas de Santo Amaro e além, quando as havia nas
encruzilhadas do povo. (…) um bêbedo temido pelos taberneiros, pois todos
sabiam o que tinha acontecido ao mixordeiro que um dia lhe dera uma malga de
vinho feito a martelo”, e a Maria Piona, levada já prenhe para o casamento por
Domingos Capador; o Padre Firmino, sabedor do “episódio insólito” do nascimento
do quarto filho de Domingos e Piona, “disse que o cachopo parecia o pequeno
José do Egipto a ser exposto pelos irmãos aos mercadores de escravos da
Palestina”; o Zé da Glória, conselheiro-mor do sinédrio da aldeia; o Jacob
Manuel de Deus Pereira, “nascido, criado e casado em Santa Eulália, livre de
todo o serviço militar por estrabismo divergente”; o Padre Carvalho, também
ele, tal como o Padre Ribeiro, “entre todos o mais douto da freguesia”; a Rola,
“uma rapariga um tanto pascácia de S. Romão, que em toda a sua vida, não foi
muito mais além da sua mera, embora própria, condição biológica”; o Irineu
Azeiteiro, que andava pelos lugares da aldeia a distribuir o azeite, “numa
carroça com a ajuda de uma mula. Tocava numa corneta à porta dos casais, ia a
uma torneira de cobre cheia de azebre, e da bilha de zinco tirava qualquer
água-ruça para as almotolias”; a Ermelinda da Fonte, tanto tida por santa como
por doida; o Padre Agostinho, etc., etc…. Tal como escreveria a professora
Manuela Ascensão Correia, “Retábulo da Folia” é «um quadro composto por um
fascinante caleidoscópio de seres que, no seu primarismo, se fundem com a terra
onde nasceram, barro do mesmo barro, às vezes tão barro que parecem só matéria,
mas que, por um olhar, por um gesto, por um desejo, se escapam do barro e
ascendem, por um momento, à sublime sacralização humana». Essa é, também, a
nossa percepção!...
NOTA MÁXIMA!
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