«…Tal como lhe prometi, li o seu Rapariga
Celta Sentada num Javali durante a viagem. [...] Li o seu livro num ápice. A
escrita agarrou-me logo de entrada. Tem algo de novo, de diferente, uma riqueza
verbal e reveladora de uma erudição discreta, que salta nas entrelinhas sem
agredir. Uma ironia sagaz percorre todas as narrativas.»
Onésimo Teotónio Almeida
Foi com o maior prazer,
diríamos até impulso intelectivo, que acedemos ao convite da Biblioteca
Municipal de Viana do Castelo, para estarmos presentes na cerimónia de
lançamento do livro «Rapariga celta
sentada num javali» de Artur Veríssimo, nascido a 5 de Fevereiro de 1956,
em Angra do Heroísmo, Açores. Ligado à acção educativa desde 1975, exerceu,
para além da docência, vários cargos de chefia e de formador, tendo sido,
também, coordenador e co-autor de manuais escolares de português (1992-2013) e
director executivo da revista «(In)Formar».
Mestre em Cultura e Literatura Portuguesas, pela Universidade dos Açores,
publicou, para além da novela Uma pedra
no sapato (1988), as obras didácticas «Registos
de observação e Dicionário da Mensagem»
(2000). Foi distinguido com o Prémio Literário Almeida Firmino (1988), a
que concorreu com o original «A serpente
está escondida na relva».
«Rapariga celta sentada
num javali», título demasiado sugestivo, quiçá, demasiado místico até,
levou-nos a procurar saber algo mais acerca do autor e da sua romanesca inspiração.
Ao apresentar-se como “uma História de Amor, de solidão acompanhada e de
generosos delírios (muito) académicos”, aumentou em nós uma espécie de pressão “endémica”,
cautelosa e defensiva. Estávamos perante um autor que não conhecíamos, mas ao
lermos a apreciação “facebookiana” do escritor e ensaísta Urbano Bettencourt,
não resistimos ao nosso impulso de inveterado bibliófilo: «Gostei imenso da tua original e surpreendente novela. É bom ver-te
pegar numa série de “questões” açorianas e tratá-las pelo reverso; era uma
coisa que fazia falta e ajuda a relativizar o mundo. A circulação de textos e o
olhar irónico foram talvez dos aspectos que mais me seduziram (acho que o único
facto inverosímil consiste em pôr os congressistas na Terceira a beber água mineral
de S. Miguel....). O teu livro despertou-me a vontade de escrever sobre ele;
vou ver se consigo livrar-me de dois textos que tenho entre mãos e depois
consigo mesmo escrever sobre ele». Adquirido o livro, e porque nunca
compramos os livros à medida da estante, passamos à sua necessária leitura.
Uma agradável surpresa
nos esperava. A chave de todo o enigma, nomeadamente a da Brianda, oradora
ruiva, e a do Viriato, “feroz opositor à moeda única europeia, conhecido
salteador, com mais fama do que proveito”, era-nos dada, numa nota inicial,
pela própria editora: «Rapariga celta
sentada num javali é a obra que melhor reflecte a experiência de vida do
autor, designadamente a que decorre da sua participação em congressos». A
partir dali, em face da “paralelo-mundividência” pelos congressos e obrigações
académicas, dispensamos o uso da rede que nos prendia à “pressão endémica”.
Leitura sem rede, soava melhor e permitia-nos estabelecer pontes. Da surpresa
inicial, passamos ao espanto. Estávamos perante uma das mais brilhantes
deambulações literárias, onde somos confrontados com a dificuldade acrescida de
sabermos onde começa a ficção e acaba a realidade: «Um javali de médio porte está a ser procurado na praia da Figueira da
Foz depois de ter abalroado, esta quinta-feira de manhã, uma viatura numa rua
da cidade. (…) Aqui o realismo é apenas isto mesmo, nada tem de mágico. O que é
estranho é o tempo em que vivemos, não a procura do javali que há-de
desenterrar a trufa do nosso contentamento.» Ironia e humor refinados (uma riqueza verbal e reveladora de uma
erudição discreta, que salta nas entrelinhas sem agredir – bebendo nas
palavras de Onésimo Teotónio Almeida, com as quais corroboramos), escorados
numa escrita de “cátedra”, condimentada através de uma elevada carga metafórica
e/ou filosófica, leva-nos, de facto, a imprimir-lhe o mérito de estarmos
perante uma bem articulada “história de amor, de solidão acompanhada de
generosos delírios (muito) académicos”: É
preciso tirar o velho intelectual dos atalhos onde se quer meter ou para onde
já o empurrámos involuntariamente. Sem ajuda do narrador, a personagem, na
pouca criatividade do desejo que a consome, depressa sentaria a oradora ruiva a
seu lado, com luzes apagadas. Daí o surgimento de uma mão fortuita que lhe
descesse o fecho da portinhola e lhe entrasse pela abertura franca das ceroulas
iria um passo… (p. 29). O que fica do que passa num congresso? Boa pergunta
para tantas respostas. Os próprios títulos dos capítulos são, só por si, um
hino à criatividade peculiar-caracterizadora do autor, de que é exemplo o quinto
capítulo: Onde se prova que o muito falar
nos congressos adormece os salteadores de estrada (e os que o não são assim
tanto) e se descobre, antes do golo do Pauleta, que D. António, Prior do Crato,
conhece as ilhas de bruma (p. 35).
Como seria
despropositado e até injusto, para com o autor e para com os hipotéticos (obrigatoriamente,
necessários) leitores, desvendar aqui todo o trama deste extraordinário
romance, apenas nos ficaremos pela degustação de algumas lexicalizações, que
nos fizeram despoletar estados psicológicos e cenários alegóricos (de uma forma
séria, rindo a bom rir), das vivências congressistas: “Na sala, os dois amigos
figadais de há pouco abraçavam-se” (p. 55); “Estando o congresso atrasado, a
sessão decorreu em simultâneo com o intervalo (…) Não foi fácil acomodar as
pessoas, muitas das quais nem eram congressistas, que a maioria destes achara o
intervalo bem mais apelativo” (p. 79); “A assistência estava rendida. E a vaga
de risos, com odor a café, que veio do exterior pela porta que, uma vez mais,
se abriu, juntou-se à torrente de boa disposição que varria a sala, como se um
espaço fosse o prolongamento natural do outro” (p. 82); “Como numa revoada de
patos-bravos a fugir aos tiros dos caçadores, o bando de congressistas
precipitou-se para a porta de saída” (p. 89); “Na sala, um conhecido
catedrático, meio-surdo, levantou-se, curvado pelo peso da idade, ainda
estremunhado de sono, e pediu a palavra” (p. 104); “Uma mulher (é a primeira
vez que a vejo) faz a sua entrada na sala no preciso momento em que alguém
chama ao palco uma nova conferencista, a professora Anne Reys. Desce parte do
corredor central, sob os aplausos do público, que não se apercebe logo de que
ela não é a senhora Reys” (p. 135); “Deixo o orador suspenso, de copo na mão,
até ao capítulo seguinte, como se o tivesse parado por acção de um comando
remoto, carregando no botão «pausa»” (p. 149); “O orador esperou que as
gargalhadas diminuíssem de volume e, com um sorriso de orelha a orelha,
recomeçou.” (p. 159) – simplesmente, SUBLIME.
E para terminarmos, quase
como fazendo jus à “História de Amor”, nada melhor apimentar as vivências congressistas:
“Deu por si, de joelhos e mãos no chão, montado pela oradora que bramia um
chicote imaginário, os corpos nus cravados na penumbra, à vista dos cortinados
que reproduziam uma caçada ao javali. Demasiado literário para ser verdade…”
(p. 94). Estava contada a história da “rapidinha ida ao quarto da oradora
ruiva”. Dado que o que se sente não se explica… o resto fica com os leitores.
NOTA MÁXIMA!
No comments:
Post a Comment