Friday, February 20, 2015

Artur Veríssimo e a sua «Rapariga celta sentada num javali»!...

«…Tal como lhe prometi, li o seu Rapariga Celta Sentada num Javali durante a viagem. [...] Li o seu livro num ápice. A escrita agarrou-me logo de entrada. Tem algo de novo, de diferente, uma riqueza verbal e reveladora de uma erudição discreta, que salta nas entrelinhas sem agredir. Uma ironia sagaz percorre todas as narrativas.»

Onésimo Teotónio Almeida

Foi com o maior prazer, diríamos até impulso intelectivo, que acedemos ao convite da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, para estarmos presentes na cerimónia de lançamento do livro «Rapariga celta sentada num javali» de Artur Veríssimo, nascido a 5 de Fevereiro de 1956, em Angra do Heroísmo, Açores. Ligado à acção educativa desde 1975, exerceu, para além da docência, vários cargos de chefia e de formador, tendo sido, também, coordenador e co-autor de manuais escolares de português (1992-2013) e director executivo da revista «(In)Formar». Mestre em Cultura e Literatura Portuguesas, pela Universidade dos Açores, publicou, para além da novela Uma pedra no sapato (1988), as obras didácticas «Registos de observação e Dicionário da Mensagem» (2000). Foi distinguido com o Prémio Literário Almeida Firmino (1988), a que concorreu com o original «A serpente está escondida na relva».
«Rapariga celta sentada num javali», título demasiado sugestivo, quiçá, demasiado místico até, levou-nos a procurar saber algo mais acerca do autor e da sua romanesca inspiração. Ao apresentar-se como “uma História de Amor, de solidão acompanhada e de generosos delírios (muito) académicos”, aumentou em nós uma espécie de pressão “endémica”, cautelosa e defensiva. Estávamos perante um autor que não conhecíamos, mas ao lermos a apreciação “facebookiana” do escritor e ensaísta Urbano Bettencourt, não resistimos ao nosso impulso de inveterado bibliófilo: «Gostei imenso da tua original e surpreendente novela. É bom ver-te pegar numa série de “questões” açorianas e tratá-las pelo reverso; era uma coisa que fazia falta e ajuda a relativizar o mundo. A circulação de textos e o olhar irónico foram talvez dos aspectos que mais me seduziram (acho que o único facto inverosímil consiste em pôr os congressistas na Terceira a beber água mineral de S. Miguel....). O teu livro despertou-me a vontade de escrever sobre ele; vou ver se consigo livrar-me de dois textos que tenho entre mãos e depois consigo mesmo escrever sobre ele». Adquirido o livro, e porque nunca compramos os livros à medida da estante, passamos à sua necessária leitura.


Uma agradável surpresa nos esperava. A chave de todo o enigma, nomeadamente a da Brianda, oradora ruiva, e a do Viriato, “feroz opositor à moeda única europeia, conhecido salteador, com mais fama do que proveito”, era-nos dada, numa nota inicial, pela própria editora: «Rapariga celta sentada num javali é a obra que melhor reflecte a experiência de vida do autor, designadamente a que decorre da sua participação em congressos». A partir dali, em face da “paralelo-mundividência” pelos congressos e obrigações académicas, dispensamos o uso da rede que nos prendia à “pressão endémica”. Leitura sem rede, soava melhor e permitia-nos estabelecer pontes. Da surpresa inicial, passamos ao espanto. Estávamos perante uma das mais brilhantes deambulações literárias, onde somos confrontados com a dificuldade acrescida de sabermos onde começa a ficção e acaba a realidade: «Um javali de médio porte está a ser procurado na praia da Figueira da Foz depois de ter abalroado, esta quinta-feira de manhã, uma viatura numa rua da cidade. (…) Aqui o realismo é apenas isto mesmo, nada tem de mágico. O que é estranho é o tempo em que vivemos, não a procura do javali que há-de desenterrar a trufa do nosso contentamento.» Ironia e humor refinados (uma riqueza verbal e reveladora de uma erudição discreta, que salta nas entrelinhas sem agredir – bebendo nas palavras de Onésimo Teotónio Almeida, com as quais corroboramos), escorados numa escrita de “cátedra”, condimentada através de uma elevada carga metafórica e/ou filosófica, leva-nos, de facto, a imprimir-lhe o mérito de estarmos perante uma bem articulada “história de amor, de solidão acompanhada de generosos delírios (muito) académicos”: É preciso tirar o velho intelectual dos atalhos onde se quer meter ou para onde já o empurrámos involuntariamente. Sem ajuda do narrador, a personagem, na pouca criatividade do desejo que a consome, depressa sentaria a oradora ruiva a seu lado, com luzes apagadas. Daí o surgimento de uma mão fortuita que lhe descesse o fecho da portinhola e lhe entrasse pela abertura franca das ceroulas iria um passo… (p. 29). O que fica do que passa num congresso? Boa pergunta para tantas respostas. Os próprios títulos dos capítulos são, só por si, um hino à criatividade peculiar-caracterizadora do autor, de que é exemplo o quinto capítulo: Onde se prova que o muito falar nos congressos adormece os salteadores de estrada (e os que o não são assim tanto) e se descobre, antes do golo do Pauleta, que D. António, Prior do Crato, conhece as ilhas de bruma (p. 35).
Como seria despropositado e até injusto, para com o autor e para com os hipotéticos (obrigatoriamente, necessários) leitores, desvendar aqui todo o trama deste extraordinário romance, apenas nos ficaremos pela degustação de algumas lexicalizações, que nos fizeram despoletar estados psicológicos e cenários alegóricos (de uma forma séria, rindo a bom rir), das vivências congressistas: “Na sala, os dois amigos figadais de há pouco abraçavam-se” (p. 55); “Estando o congresso atrasado, a sessão decorreu em simultâneo com o intervalo (…) Não foi fácil acomodar as pessoas, muitas das quais nem eram congressistas, que a maioria destes achara o intervalo bem mais apelativo” (p. 79); “A assistência estava rendida. E a vaga de risos, com odor a café, que veio do exterior pela porta que, uma vez mais, se abriu, juntou-se à torrente de boa disposição que varria a sala, como se um espaço fosse o prolongamento natural do outro” (p. 82); “Como numa revoada de patos-bravos a fugir aos tiros dos caçadores, o bando de congressistas precipitou-se para a porta de saída” (p. 89); “Na sala, um conhecido catedrático, meio-surdo, levantou-se, curvado pelo peso da idade, ainda estremunhado de sono, e pediu a palavra” (p. 104); “Uma mulher (é a primeira vez que a vejo) faz a sua entrada na sala no preciso momento em que alguém chama ao palco uma nova conferencista, a professora Anne Reys. Desce parte do corredor central, sob os aplausos do público, que não se apercebe logo de que ela não é a senhora Reys” (p. 135); “Deixo o orador suspenso, de copo na mão, até ao capítulo seguinte, como se o tivesse parado por acção de um comando remoto, carregando no botão «pausa»” (p. 149); “O orador esperou que as gargalhadas diminuíssem de volume e, com um sorriso de orelha a orelha, recomeçou.” (p. 159) – simplesmente, SUBLIME.
E para terminarmos, quase como fazendo jus à “História de Amor”, nada melhor apimentar as vivências congressistas: “Deu por si, de joelhos e mãos no chão, montado pela oradora que bramia um chicote imaginário, os corpos nus cravados na penumbra, à vista dos cortinados que reproduziam uma caçada ao javali. Demasiado literário para ser verdade…” (p. 94). Estava contada a história da “rapidinha ida ao quarto da oradora ruiva”. Dado que o que se sente não se explica… o resto fica com os leitores.
        NOTA MÁXIMA! 

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