«…O OSSO DA BORBOLETA é um romance sobre um
país que não encontra lugar no mundo. Da aflição das pessoas que procuram o
amor, de fracasso em fracasso. Comédia humana onde, apesar de tudo, o mal pode
morrer e a vida continuar.»
Sexta-feira, 20 de
Fevereiro de 2015, dia em que choveu copiosamente, em tempo de “reflexão/descompressão”
de uma semana extremamente penosa para os “estados da alma”, e prestávamos, ao
fim da tarde, a nossa sentida homenagem, à dimensão cosmológica, aos que
connosco se cruzaram, partilharam intimidades e familiaridade, numa
cumplicidade desinteressada, leal, solidária e arrebatadora – Jaime Gonçalves
Enes (1915-2015), S. Salvador da Torre, Viana do Castelo; Maria Augusta Alves
Forte Pereira (1953-2015), Vila Boa, Barcelos; Maria Madalena Vieira de Sousa
(1922-2015), S. Paio, Arcos de Valdevez –, resolvemos prolongar essa
descompressão, participando, à noite, no «À
conversa com…», habitual iniciativa da Biblioteca Municipal de Viana do
Castelo, que visa promover, em torno do livro, o diálogo e a troca de
conhecimentos com escritores contemporâneos, proporcionando a oportunidade de
conviver de perto com os autores e a sua obra, e onde se pretende, ao mesmo
tempo, que seja um espaço de incentivo à leitura, de divulgação das obras dos
autores da actualidade, de promoção da cultura e do conhecimento, e, sobretudo,
de interacção entre o público leitor e os escritores.
A chuva permanecia,
irritante e desmotivadora. Mesmo assim não resistimos ao desafio lançado pela
Biblioteca, para ouvirmos e convivermos, por algumas horas, com o escritor,
repórter, cronista e argumentista português, Rui Cardoso Martins. Na “bagagem”,
para dois dedos de conversa, trazia o seu mais recente romance «o osso da borboleta», apontado pela
editora «Tinta da China» –
referimo-la, ética e esteticamente falando, pela qualidade que empresta às suas
publicações – como “um romance sobre um país que não encontra lugar no mundo.
Da aflição das pessoas que procuram o amor, de fracasso em fracasso. Comédia
humana onde, apesar de tudo, o mal pode morrer e a vida continuar”. Era um
verdadeiro “handicap” para não faltarmos à chamada.
Acerca de «o osso da borboleta», muito se falou,
proporcionando, ao mesmo tempo, excelentes momentos de humor, uma das
peculiares características criativas em Rui Cardoso Martins. «O osso da borboleta», como podemos ler
em sinopse, procura reproduzir, metaforicamente, “uma cidadezinha atlântica
portuguesa, hoje. Praia, casino, pescadores, peixeiras, doutores, bandidos, o
rasto dos refugiados judeus da Segunda Guerra. Nesta terra consumida pela
grandeza do passado – ou pela falsa memória de que foi grande – um homem
escondeu-se do mundo. Onde nem todos os polícias juntos o encontram”, e fala
com as pombas e com deusinhos gregos, tem um Olimpo de vitrine: «Aqui, no quarto ao lado, tenho a vitrine dos
deusinhos clássicos. Ainda não viste a zona, mas fica por baixo da janela onde
se apanham pombos. A parede está forrada de grandes enciclopédias antigas
portuguesas, brasileiras, espanholas, francesas, inglesas, etc., que o mundo
publicou desde um século. Há muitas diferenças nos mapas antigos e novos.
Mudança de tamanho dos países, invasões, anexações, genocídios,
desaparecimentos de território, trocas de nome, de línguas oficiais» (p.
35).
A vizinha de baixo
arrasta as pantufas da velhice e da solidão, insulta as flores. D. Purificação
já foi a mais bela mulher da cidade. O jogo do passado vem ter com a Borboleta.
Um deus de província e do dinheiro sujo quer esmaga-lo. Morre o cão, acaba a
raiva: «Como ela se zanga com as flores
do jardim nas traseiras. Jardim não, pátio. Pátio é exagero, um saguão entre o
prédio e o muro» (p. 41). Aqui, em «o osso da borboleta» também gravita o
criacionismo: «Porque Deus não sabe se
cria mais uma galáxia quando se lembra dela, se é a galáxia que se forma quando
a escreve no caderno» (p. 46) e o Universo que partilha o destino de uma
chávena de café ou de um lago, e onde “dar a pílula às pombas não lembra ao
diabo”. Aqui, há sempre, de facto, «uma
história verdadeira sobre um vizinho que não se sabe se aconteceu…» (p.
53), só porque se está bem, tendo reservas no sótão. É do sótão, clausura do
homem que se escondeu do mundo, que se avista a janela da D. Purificação: «Ela está na janela da frente. Não vejo.
Deste lado do prédio, no sótão, só tenho a couve e o céu com o algeroz da
armadilha para pássaros» (p. 67).
Naquele dia de
“reflexão/descompressão”, dia em que choveu copiosamente, apreendemos uma
lição: «Há quem viva as memórias de
outras pessoas, ouve contar e mais tarde acha que foi consigo que se passou. Há
os que aprendem, em criança, que é obrigatório lembrar as memórias dos outros,
e nem se lembram de recordar as suas, nunca se atrevem (…) E há essa doença de
lembrar todos os dias e horas da vida, e o que disse alguém e como estava
vestido nesse instante, se chovia ou não chovia» (p. 135). E por aqui nos
ficamos, dado que nesse dia, em local sagrado, frequentado por gente de fé,
“roubaram-nos” o guarda-chuva.
Principalmente para os
mais distraídos e pouco participativos, convenhamos em dizer que Rui Cardoso
Martins nasceu em Portalegre, em 1967. Licenciado em Comunicação Social pela
Universidade Nova de Lisboa, é jornalista e cronista do jornal Público desde a
sua criação, onde criou a crónica “Levante-se o Réu”, e como repórter cobriu,
entre outros acontecimentos, o cerco a Serajevo e Mostar, na Guerra da Bósnia,
e as primeiras eleições livres na África do Sul. Recebeu dois prémios Gazeta de
Jornalismo. Foi, ainda, um dos fundadores das “Produções Fictícias”, sendo um
dos escritores do programa «Contra-Informação», da RTP 1. Foi co-autor de
«Herman Enciclopédia», escreveu para «Conversa da Treta» e para o jornal
«Inimigo Público». Foi co-autor da série dramática «Sociedade Anónima», da RTP,
finalista no Festival Internacional de Veneza. Enquanto argumentista de cinema
escreveu o guião de “Zona J” e (em parceria) o da longa-metragem “Duas
Mulheres”.
É autor dos romances «E
se eu gostasse muito de morrer» (2006); «Deixem passar o homem invisível»
(2009), “Grande Prémio de Romance e Novela APE”, eleito um dos livros do ano
por várias publicações e críticas, e um dos três nomeados nos prémios SPA; «Se
fosse fácil era para os outros» (2012); e «o osso da borboleta» (2014), livro
que serviu de mote para os dois dedos de conversa, que decorreu na bem
preenchida Sala Couto Viana, apesar do tempo chuvoso não se apresentar muito
convidativo à participação dos admiradores da obra deste insigne autor, que,
para além de ter alguns dos seus livros traduzidos em inglês, espanhol e
húngaro, publicou contos em várias revistas nacionais e internacionais.
Foi uma noite de
sexta-feira bem-humorada, positivamente bem-humorada, apesar da aflição das
personagens que gravitam pelo romance, que procuram o amor, de fracasso em
fracasso. Apesar de tudo, conclui-se, que se trata de uma comédia onde o mal
pode morrer e a vida continuar, mesmo que ofuscada pelo tempo de chuva.
NOTA MÁXIMA!
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