Sunday, January 31, 2016

À conversa com António Mega Ferreira!...

«Um livro, um filme, uma ópera. Nos contos de António Mega Ferreira é possível identificar uma constelação afectiva, um universo literário e cultural que passa das obras dos outros para a sua. Na verdade, o escritor e ensaísta concebe até as suas histórias curtas, justamente pela dimensão, como um diálogo intertextual, uma conversa que mantém com a criação alheia. Às vezes, chegam a ser formas de continuar o que ficou suspenso, interrompido, nas mãos do leitor. Muitos dos seus contos alimentam-se dessa curiosidade sobre o “depois do fim”. São sequelas de enredos, revisitações de lugares, dúvidas acerca de personagens. Mas não só. Noutros casos, revelam-se obsessões, memórias, lentas elaborações que, com o tempo, se impuseram na página…»

JL (Ano XXXV, N.º 1165, p. 11)

ANTÓNIO MEGA FERREIRA, escritor, gestor e jornalista, nascido em Lisboa a 25 de Março de 1949, esteve em Viana do Castelo, na noite de 22 de Janeiro de 2016, no «À conversa com…», habitual iniciativa mensal da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, onde se pretende promover, em torno do livro, o diálogo e a troca de conhecimentos com escritores contemporâneos, proporcionando a oportunidade de conviver de perto com os autores e a sua obra.  
Este excepcional escritor/conviva (culturalmente bem formado e de um humor refinado), frequentou o Liceu Normal de Pedro Nunes, licenciou-se em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e estudou Comunicação Social, na Universidade de Manchester. Iniciou-se no jornalismo em 1968 no Comércio do Funchal, exercendo como profissional a partir de 1975, no Jornal Novo, Expresso, ANOP e RTP, onde chefiou a redacção do 2º canal e foi apresentador do Informação/2. Autor e apresentador de programas de televisão, foi ainda redactor de O Jornal e chefe de redacção do JL (Jornal de letras, artes e ideias). Entre 1986 e 1988, António Mega Ferreira assumiu a direcção editorial do Círculo de Leitores, e fundou e foi o primeiro director da revista Ler. Membro da Comissão dos Descobrimentos a partir de 1988, fundou a revista Oceanos e dirigiu a campanha de promoção de Lisboa como cidade candidata à Exposição Internacional de 1998. Foi comissário executivo da Expo’98, Oceanário de Lisboa e Pavilhão Atlântico. Foi também presidente do Conselho de Administração da Parque Expo entre 1999 e 2002, e da Fundação Centro Cultural de Belém, entre 2006 e 2012.


Dirigiu a representação de Portugal como “País-Tema” da Feira do Livro de Frankfurt de 1997, e, desde 1986, cronista regular em diversas publicações, entre as quais se destacam: Diário de Notícias, O Independente, Expresso, Diário Económico, Visão, Egoísta e Público. Actualmente, António Mega Ferreira desempenha as funções de director executivo da AMEC/Metropolitana.
A 9 de Junho de 1998 foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo e, em 2002, recebeu o Grande Prémio Camilo Castelo Branco pela recolha de contos «A expressão dos afectos». Traduziu livros de Annie Kriegel, Mishima, Cendrars, Stendhal, Unamuno, Perec e Robert Louis Stevenson.
Iniciou a sua carreira literária em 1984, tendo publicado mais de três dezenas de obras, no âmbito da ficção, poesia, ensaio e crónicas, sendo que, da sua extensa bibliografia, destacamos: “Graça Morais, Linhas da Terra” (ensaio), 1984; “O Heliventilador de Resende” (ficção), 1985; “Fernando Pessoa, o Comércio e a Publicidade” (ensaio e antologia), 1985; “As Caixas Chinesas” (ficção), 1988; “As Palavras Difíceis” (ficção), 1991; “Os Princípios do Fim” (poesia), 1992; “Os Nomes de Europa” (ensaio), 1994; “A Borboleta de Nabokov” (crónicas), 2000; “A Expressão dos Afectos” (ficção), 3ª edição, 2001; “Amor” (Novela), 2003; “A Blusa Romena”, (romance), 2008; “Lisboa Song”, (ficção), 2010; “Roma – Exercícios de Reconhecimento”, 2010; “Macedo, uma biografia da infâmia” (biografia), 2011; “Cartas de Casanova – Lisboa 1757”, 2013; “O essencial sobre Marcel Proust”, 2013; e “Hotel Locarno”, 2015, livro que serviu de mote para dois dedos de conversa.


Tal como se pode ler em sinopse, “da solidão sem esperança do xerife de Rio Bravo à busca sem horizonte num lugar qualquer do Alentejo, treze contos em que se contam desencontros e incompreensões, como os quartos fechados de um hotel romano, sem portas de comunicação uns com os outros. Um conferencista que se precipita na memória de um nome amado, um cadete da marinha que faz da dissimulação o seu livre-trânsito para a liberdade, um diplomata incapaz de resistir ao perfume de uma baiana e de tolerar o aroma de um fruto tropical, uma criança que nunca será capaz de perdoar ao pai uma recusa que lhe nega a possibilidade de ser sujeito da História, são outras tantas almas desiludidas e errantes que se acolhem à sombra protectora do Hotel Locarno. De passagem. Rumo a outro hotel qualquer”. De facto, se à partida o nome do hotel nada tivesse a ver com o conteúdo e cronologia dos acontecimentos, António Mega Ferreira, ao alegoricamente colocar-lhe quartos fechados sem portas de comunicação uns com os outros, acaba por lhe imprimir vida e comunicação, através de vontades e afectos, tarefas quotidianas, solidão, peso da ausência, formas de nunca ter chegado a chegar, frieza absurda da dor na partida, curiosidades que satisfazem-se, e, depois de saciadas, acomodam-se “à ideia feita que a revelação nos oferece”.
António Mega Ferreira não gosta do cliché de que a culpa é das mulheres, sempre que se fala de comportamentos e traições. Por isso, dá voz a Zerlina, sem fingimentos ou surpresa de se tornar subitamente prisioneira de todos os sentimentos contraditórios: culpa, desejo, remorso ou curiosidade. Ao rejeitar Don Giovanni, Zerlina acaba por exercer a sua própria liberdade. Há em Hotel Locarno, por exemplo, uma presença afectiva de Marcel Proust; intemporalidades; e cheiros, como, circunstancialmente, é o caso do fruto tropical “Jenipapo”, causa-efeito do perfume perturbante, emanado da mulata Rosália para o pobre cônsul Ilídio Mendes: “O perfume concentrado do jenipapo invadiu tudo, o seu desejo insatisfeito e a sua decepção, a sua raiva e a consciência do seu descalabro. Ilídio Mendes só teve tempo para se debruçar sobre o lava-louça: como quem expulsa uma tensão longamente suportada, esvaziou o estômago sem aliviar a alma”. Há ainda tempo para falar da República e do “tio João, que era um monárquico indefectível”; de uma “teoria da leitura”; da visão de D. Quixote no Palacete Hotel de Madrid; e da razão pela qual alguém deixou que a porta se fechasse atrás de si, permitindo a contraposição de que “qualquer lugar é bom para começar a procurar”.
Um livro com uma diversidade de registos, onde nem mesmo os quartos sem portas de comunicação conseguem impedir de encerrar o livro da adolescência.
Uma conversa interessante, bem-humorada, de portas escancaradas.
         Gostamos, e isso nos basta! 

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