«Um livro, um filme, uma ópera. Nos contos de
António Mega Ferreira é possível identificar uma constelação afectiva, um
universo literário e cultural que passa das obras dos outros para a sua. Na
verdade, o escritor e ensaísta concebe até as suas histórias curtas, justamente
pela dimensão, como um diálogo intertextual, uma conversa que mantém com a
criação alheia. Às vezes, chegam a ser formas de continuar o que ficou
suspenso, interrompido, nas mãos do leitor. Muitos dos seus contos alimentam-se
dessa curiosidade sobre o “depois do fim”. São sequelas de enredos,
revisitações de lugares, dúvidas acerca de personagens. Mas não só. Noutros
casos, revelam-se obsessões, memórias, lentas elaborações que, com o tempo, se
impuseram na página…»
JL (Ano XXXV, N.º 1165, p. 11)
ANTÓNIO MEGA FERREIRA,
escritor, gestor e jornalista, nascido em Lisboa a 25 de Março de 1949, esteve
em Viana do Castelo, na noite de 22 de Janeiro de 2016, no «À conversa com…»,
habitual iniciativa mensal da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, onde se
pretende promover, em torno do livro, o diálogo e a troca de conhecimentos com
escritores contemporâneos, proporcionando a oportunidade de conviver de perto
com os autores e a sua obra.
Este excepcional
escritor/conviva (culturalmente bem formado e de um humor refinado), frequentou
o Liceu Normal de Pedro Nunes, licenciou-se em Direito, pela Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, e estudou Comunicação Social, na
Universidade de Manchester. Iniciou-se no jornalismo em 1968 no Comércio do Funchal, exercendo como
profissional a partir de 1975, no Jornal
Novo, Expresso, ANOP e RTP, onde
chefiou a redacção do 2º canal e foi apresentador do Informação/2. Autor e
apresentador de programas de televisão, foi ainda redactor de O Jornal e chefe de redacção do JL (Jornal de letras, artes e ideias). Entre
1986 e 1988, António Mega Ferreira assumiu a direcção editorial do Círculo de Leitores, e fundou e foi o primeiro
director da revista Ler. Membro da
Comissão dos Descobrimentos a partir de 1988, fundou a revista Oceanos e dirigiu a campanha de promoção
de Lisboa como cidade candidata à Exposição Internacional de 1998. Foi
comissário executivo da Expo’98, Oceanário de Lisboa e Pavilhão Atlântico. Foi
também presidente do Conselho de Administração da Parque Expo entre 1999 e 2002, e da Fundação Centro Cultural de Belém, entre 2006 e 2012.
Dirigiu a representação
de Portugal como “País-Tema” da Feira do Livro de Frankfurt de 1997, e, desde
1986, cronista regular em diversas publicações, entre as quais se destacam: Diário de Notícias, O Independente, Expresso,
Diário Económico, Visão, Egoísta e Público. Actualmente,
António Mega Ferreira desempenha as funções de director executivo da AMEC/Metropolitana.
A 9 de Junho de 1998
foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem
Militar de Cristo e, em 2002, recebeu o Grande
Prémio Camilo Castelo Branco pela recolha de contos «A expressão dos afectos». Traduziu livros de Annie Kriegel,
Mishima, Cendrars, Stendhal, Unamuno, Perec e Robert Louis Stevenson.
Iniciou a sua carreira
literária em 1984, tendo publicado mais de três dezenas de obras, no âmbito da
ficção, poesia, ensaio e crónicas, sendo que, da sua extensa bibliografia,
destacamos: “Graça Morais, Linhas da Terra” (ensaio), 1984; “O Heliventilador
de Resende” (ficção), 1985; “Fernando Pessoa, o Comércio e a Publicidade”
(ensaio e antologia), 1985; “As Caixas Chinesas” (ficção), 1988; “As Palavras
Difíceis” (ficção), 1991; “Os Princípios do Fim” (poesia), 1992; “Os Nomes de
Europa” (ensaio), 1994; “A Borboleta de Nabokov” (crónicas), 2000; “A Expressão
dos Afectos” (ficção), 3ª edição, 2001; “Amor” (Novela), 2003; “A Blusa
Romena”, (romance), 2008; “Lisboa Song”, (ficção), 2010; “Roma – Exercícios de
Reconhecimento”, 2010; “Macedo, uma biografia da infâmia” (biografia), 2011;
“Cartas de Casanova – Lisboa 1757”, 2013; “O essencial sobre Marcel Proust”,
2013; e “Hotel Locarno”, 2015, livro que serviu de mote para dois dedos de
conversa.
Tal como se pode ler em
sinopse, “da solidão sem esperança do xerife de Rio Bravo à busca sem horizonte
num lugar qualquer do Alentejo, treze contos em que se contam desencontros e
incompreensões, como os quartos fechados de um hotel romano, sem portas de
comunicação uns com os outros. Um conferencista que se precipita na memória de
um nome amado, um cadete da marinha que faz da dissimulação o seu
livre-trânsito para a liberdade, um diplomata incapaz de resistir ao perfume de
uma baiana e de tolerar o aroma de um fruto tropical, uma criança que nunca
será capaz de perdoar ao pai uma recusa que lhe nega a possibilidade de ser
sujeito da História, são outras tantas almas desiludidas e errantes que se
acolhem à sombra protectora do Hotel
Locarno. De passagem. Rumo a outro hotel qualquer”. De facto, se à partida
o nome do hotel nada tivesse a ver com o conteúdo e cronologia dos
acontecimentos, António Mega Ferreira, ao alegoricamente colocar-lhe quartos
fechados sem portas de comunicação uns com os outros, acaba por lhe imprimir
vida e comunicação, através de vontades e afectos, tarefas quotidianas,
solidão, peso da ausência, formas de nunca ter chegado a chegar, frieza absurda
da dor na partida, curiosidades que satisfazem-se, e, depois de saciadas,
acomodam-se “à ideia feita que a revelação nos oferece”.
António Mega Ferreira
não gosta do cliché de que a culpa é das mulheres, sempre que se fala de
comportamentos e traições. Por isso, dá voz a Zerlina, sem fingimentos ou
surpresa de se tornar subitamente prisioneira de todos os sentimentos
contraditórios: culpa, desejo, remorso ou curiosidade. Ao rejeitar Don
Giovanni, Zerlina acaba por exercer a sua própria liberdade. Há em Hotel
Locarno, por exemplo, uma presença afectiva de Marcel Proust; intemporalidades;
e cheiros, como, circunstancialmente, é o caso do fruto tropical “Jenipapo”,
causa-efeito do perfume perturbante, emanado da mulata Rosália para o pobre
cônsul Ilídio Mendes: “O perfume concentrado do jenipapo invadiu tudo, o seu
desejo insatisfeito e a sua decepção, a sua raiva e a consciência do seu
descalabro. Ilídio Mendes só teve tempo para se debruçar sobre o lava-louça:
como quem expulsa uma tensão longamente suportada, esvaziou o estômago sem
aliviar a alma”. Há ainda tempo para falar da República e do “tio João, que era
um monárquico indefectível”; de uma “teoria da leitura”; da visão de D. Quixote
no Palacete Hotel de Madrid; e da razão pela qual alguém deixou que a porta se
fechasse atrás de si, permitindo a contraposição de que “qualquer lugar é bom
para começar a procurar”.
Um livro com uma
diversidade de registos, onde nem mesmo os quartos sem portas de comunicação
conseguem impedir de encerrar o livro da adolescência.
Uma conversa
interessante, bem-humorada, de portas escancaradas.
Gostamos, e isso nos basta!
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