«Ao cair da noite, os sons vindos da floresta
eram mais vivos e tornaram-se quase ensurdecedores nalguns pontos do caminho. E
conseguia distinguir alguns deles, como o latido dos cães e o uivar quase
constante das hienas e, estranhamente, os de um batuque distante, rompendo a
noite…»
Guilherme Valadão
Toda a gente sabe (ou
devia saber) que Angola representa para nós um alicerce saudável na construção
da nossa personalidade e sensibilidade inteligível, sem equívoco dos sentidos.
E é nesse sentido (com os devidos pedidos de desculpa para a redundância) que nos
aventuramos na leitura compulsiva, em tudo o que diga respeito à Angola da
nossa infância e juventude, espaço temporal de gratas memórias, onde fizemos
parte da paisagem; subimos às mangueiras, cajueiros, abacateiros; vimos pilar a
mandioca, colher o café, chorar cantando ao som do batuque, porque acreditavam
na vida para além da morte; talhar o marfim, pau-rosa e pau-preto (…). Aí
nasceram nossos irmãos. Vimo-los crescer e com eles crescemos. Essa é a mística
e a descompressão que ora nos vem pela leitura.
Hoje falar-vos-emos de
dois escritores, que recomendamos vivamente, porque se nos oferece a condição
objectiva para a dedução transcendental: Isabel Valadão nasceu na pequena vila
de Paço de Arcos (Lisboa) mas, em 1951, com a idade de seis anos, foi para
Angola, aí tendo vivido até 1975, pouco antes deste país se tornar
independente. Acompanhando os pais no seu périplo angolano, passou por diversas
regiões, desde Lobito a Malange, até se fixarem em Luanda, cidade onde viveu a
adolescência, casou e onde nasceram as suas duas filhas – Margarida, nascida em
1968 e Teresa, em 1974. Durante alguns anos, foi analista química dos Serviços
de Geologia e Minas em Luanda e secretária da revista angolana Notícias. Regressou a Portugal em 1976,
depois de uma breve passagem pela África do Sul, onde a sua família se refugiou
na sequência dos graves acontecimentos que antecederam a independência de
Angola. Viveu em Macau, regressando definitivamente a Portugal em 1986. Cascais
foi o local escolhido para se fixar e aí viveu durante mais de trinta anos. Licenciou-se
em História da Arte na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.
Em privado, dedicou-se à investigação na área da Defesa e Conservação do
Património, paralelamente à conservação e restauro de pintura. Como faz questão
de dizer, vive na região saloia de Mafra, na companhia do marido (Guilherme
Valadão), nove gatos e uma doce golden
retriever chamada Daisy. Publicou,
sob a chancela da Bertrand: Loanda –
Escravas, Donas e Senhoras (2011); A
Sombra do Imbondeiro – Estórias e Memórias de África (2012); Angola – As Ricas-Donas (2014).
Guilherme Valadão
nasceu em Angola em 1940, por lá fez a sua formação escolar, passando pelo
Liceu Salvador Corrêa de Sá, em Luanda, e pelo Colégio dos Irmãos Maristas, em
Silva Porto. Fez a sua vida profissional a partir de Luanda, viajando em
trabalho por todo o território e por vários países da África Austral, durante
vários anos. Em 1966 casou com a Isabel de quem teve as duas filhas. Em 1975,
pouco antes da Independência daquele território, e na iminência de ser preso
pelo MPLA devido à sua proximidade pessoal a Joaquim Pinto de Andrade,
refugiou-se na África do Sul onde foi acolhido pela Philips como auditor interno. Em 1977 chegou a Portugal com a
família, onde se estabeleceu como mediador de negócios imobiliários. Passados
dois anos, encerrou a empresa e foi viver para Macau os dez anos seguintes,
estabelecendo-se com negócios ligados a obras públicas, representações e
comércio. E nessa actividade viria a conhecer algumas regiões da China, incluindo
Hong Kong, Cantão e Xangai, entre outras. Publicou, também sob a chancela da
Bertrand, Era Uma Vez em Angola (2015),
uma gota de água do que tem escrito ao longo dos últimos doze anos, entre prosa
e poesia, e guardado. Este livro tem o mérito naquilo que a nossa Angola
empresta a todos os seus filhos no esplendor da sua História, no feitiço das
suas gentes e no encanto da sua geografia – conta a pequena odisseia de um
miúdo zangado com o mundo, que atravessa o território em todos os sentidos, e
em muitos povos se integra como qualquer outra criança a viver nas mesmas
circunstâncias. Tal como um dia nos confidenciou Guilherme Valadão: «Ao longo das mais de setecentas páginas do
livro completo, que vai de 1912 até ao ano da Independência, em 1974, conto a minha
história e a da minha família até ao dia que fui obrigado a abandonar a terra
onde nasci. Para trás ficavam as memórias e nos cemitérios os ascendentes dessa
criança problemática, que se fez homem, por lá viveu os anos da guerra e os
conflitos próprios da história dos povos. Por razões editoriais a parte
publicada com este livro é apenas dos primeiros três ou quatro capítulos do
manuscrito…».
Que dizer, então, da
escrita de Isabel e Guilherme Valadão? Tão simples como isto: Literatura com
alma. Forma nostálgica de respeito, neutralidade e, sobretudo, honestidade
intelectual. É um sentir da africanidade, envolto por estórias e viagens enfatizadas
pelo misterioso e maravilhoso, sem dissimulações ou leituras evasivas, feitas
pelo ressoar dos tambores (batuques), dos quissanjes ou marimbas; manhãs de
intenso nevoeiro na partida para o degredo; gente ruidosa à chegada, em
subúrbios da cidade baixa, qual bairro “Ingombota” das quintandeiras, oleiros,
pedreiros, sapateiros, latoeiros, contrastando com o cenário do bairro dos
Coqueiros, no sopé da Fortaleza do Morro, que de Jesuítas se vestia; dos
purgantes para limpeza dos intestinos; os acontecimentos automobilísticos; os
lugares emblemáticos dessa Luanda das acácias em flor: a Livraria Lello, as
pastelarias Paris, Versailles e Arcádia, os gelados do Baleizão, etc., etc… Conhecê-los
será a próxima etapa de releitura, de estórias tão próximas das nossas, que,
por certo, se fundirão com a história da nossa Angola e das suas gentes. Nem
que seja através do «Era uma vez...», decalcado pelo sentir e pelo cheiro, vida
sentimental, busca da felicidade, entre fidalgos, traficantes, degredados,
escravos e “libertos”, donas e senhoras, sem esquecer o sagrado imbondeiro,
árvore da sabedoria e vida, em paraíso onde nos era permitido proibir o
proibido. De norte a sul do território, olhando para trás, escutando ruídos e
vivendo, sentindo. Conversas intermináveis; “mata-bicho” e refeições
condimentadas pelo charuto aceso e saboreado; abrindo caminhos pelas picadas em
direcção às sanzalas, temendo cipaios; viagens mágicas, por sítios onde as
águas dos rios e oceanos eram mansas e cristalinas, e o “céu era de um azul
profundo e, lá ao longe, a uma grande distância daquele ponto, era já da cor do
fogo porque o sol mergulhava naquele oceano distante”. Contrastes e memórias
aguareladas, marcadamente saudáveis: «O meu filho nasceu hoje…». Terra onde
tudo pegava de estaca!
Nestes livros, lidos e
relidos, será exigível os autógrafos, porque gostamos. A arte e a leitura pelo
gosto, sem fretes, será sempre a única forma, nossa, de trocarmos horas de
tédio pela alegria de permanecermos neste planeta. Esse será sempre o nosso “kukala
kiambote ó kíua” e a única forma de nos libertarmos deste “psoríaco”
obscurantismo, agarrando na palma das mãos a cor do fogo, de um sol diferente,
tropicalmente diferente.
NOTA MÁXIMA!
2 comments:
Meu caro Porfírio Silva
Não venho para lhe agradecer nada. Não teria palavras para o fazer, as adequadas ao momento que criou com a sua crítica, num recato que, decerto, me perdoará. Nenhuma estaria à altura das suas palavras porque nelas eleva os meus méritos de escritor a um nível que estou muito longe de atingir. Mas venho, decididamente, falar dela, porque nela me revejo na africanidade intrínseca das memórias que trago da terra onde nasci, da Angola dos meus pais, de quem herdei o sonho de um futuro que não chegou ao fim. Uma parte dele morreu. A outra viverá para sempre no meu coração. É dela que quero escrever, dessa memória viva que me alimenta o espírito, a memória dos homens que fizeram daquela terra o berço de muitas gerações e as campas dos seus maiores.
Sobre isso escreverei até ao fim.
Escreverei até que me doa a alma, escreverei sempre. Contarei a história do homem branco, da mulher branca, da criança branca, irmãos de sangue, mais negros do que o mais negro filho de África, tão genuínos na sua africanidade como o leito de um Quanza que oferece as suas águas a um oceano mestiço, grandioso, sem fim - e nele buscam o infinito, a enseada encantada de Kianda. Sim, falarei dos meus irmãos, de todos eles – brancos e negros, e de uma terra generosa onde vivíamos sem nunca sabermos da cor da pele de cada um. Falarei de um João Botelho que ainda lá vive, jovem e sonhador, em busca do futuro na aventura da vida, entre a guerra e a paz, em busca da harmonia, na esperança de uma terra livre, na memória de gente que por ela lutou, dela foi guerreiro, herói e mártir e nela jaz, tantos dela, em tumba rasa.
Um abraço grande pela generosidade das suas palavras.
Brutal.
Ja li "A sonbra do imbondeuro" e nao descanso enquanto nao ler todos os outros q me faltam.
Parabens
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