“De
toda a poesia portuguesa lida em 2013 — estou a falar de inéditos de consagrados,
novos e novíssimos —, Monstros Antigos
é o livro que mais me instigou…”
Eduardo Pitta
Se eventualmente o
título desta nossa crónica pudesse intrigar todos aqueles que, semana a semana,
fazem o favor de nos ler, depressa se excluiria tal pressuposto, tendo em conta
que o Porfírio Silva em “referência titular” é um filósofo da ciência, cujo
trabalho mais recente se centra no tema das sociedades artificiais e no papel
social dos robôs. De facto, este Porfírio (Carvalho) Silva (n. 1961), é
licenciado e mestre em Filosofia. Doutorou-se em Epistemologia e Filosofia das
Ciências, em 2007, com uma tese sobre as ciências do artificial como ciências
do humano. Foi Investigador Visitante no Institut
Supérieur de Philosophie, da Université
Catholique de Louvain, e na Facultad
de Filosofía da Universidad Complutense de Madrid. É actualmente
investigador no Instituto de Sistemas e
Robótica (pólo do Instituto Superior Técnico), como bolseiro de
pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Aí, tem sido
organizador dos Ciclos de Conferências com o título genérico “Das Sociedades
Humanas às Sociedades Artificiais”, actividade multidisciplinar que teve em
2011 a sua terceira edição. Publicou os livros A Filosofia da Ciência de Paul Feyerabend (1998, Piaget), A Cibernética: Onde os Reinos se Fundem
(2007, Quasi), Das Sociedades Humanas às
Sociedades Artificiais (2011, Âncora) e Podemos
matar um sinal de trânsito? (2012, Esfera do Caos). É colaborador do Centro
de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa e do Projecto MILPLANALTOS.
Regressado há cerca de
quatro meses (22 de Setembro de 2013) do Japão, onde esteve como Investigador
Visitante no Department of History and
Philosophy of Science (Graduate School of Arts and Sciences) da
Universidade de Tóquio, Porfírio Silva acaba por nos surpreender com a
publicação de «Monstros Antigos», numa bem conseguida edição, porque
esteticamente perfeita, da “Esfera do Caos Editores”. E de nada lhe vale dizer
que “não passo a ser poeta por escrever um livro de poesia. Podia, pois, hesitar
em publicar. Só que não há tempo para burilar justificações: esta é uma poesia
da urgência, uma poesia necessária, algo que poderia adiar em tempos de
lassidão – mas não hoje. É duro afastar o nevoeiro com as mãos nuas, mas é
preciso tentar. Quem diz com as mãos, diz com as palavras”, quando a percepção
que temos da poesia, enquanto essência do estar e do ser, leva-nos a creditá-lo
como um poeta desentrincheirado, de urgência: “Escrever poesia é uma
necessidade quando o dia do cão negro espreita, quando se desequilibra a única
aresta do tempo onde passados e futuros se encontram. O que é difícil, em
tempos difíceis, é não meter os poemas em trincheiras. Temos de evitar a todo o
custo que os poemas se metam em trincheiras. As trincheiras, mesmo que se
destinem a ser sepulturas, são cómodas: dizem-nos de que lado estamos, quem
supostamente são os nossos e quem supostamente são os outros, para que lado
disparar. / Só que uma poesia de urgência não pode entrincheirar-se. Pelo
contrário, tem de encontrar os caminhos para se chegar aos sítios onde sempre
se esteve e que continuam a parecer pátrias estrangeiras. Porque só o estranho
pode tornar-se uma pátria” – lemos em sinopse.
Embora “Monstros
Antigos” não seja de leitura fácil para o mais comum dos mortais,
principalmente em tempos em que “há palavras por todo o lado / comportando-se
com o esvoaçar quebrado dos mosquitos” (p. 63), teimaremos em dizer que estamos
perante um extraordinário livro de poesia, que se apresenta como um excelente
exercício para mente, mesmo para aqueles que se possam achar menos pensadores.
É evidente que a poesia não se explica, sente-se e apreende-se deliciosamente
(ou não), mas, mesmo assim, não resistimos à aproximação da “tempestade de
silêncio”, onde “as palavras e as bocas desencontraram-se na poeira do mundo”
(p. 7). Neste entrosar de palavras, Porfírio Silva acaba para nos despertar
para o sentido filosófico dos espaços temporais, físicos e cognitivos; da
génese e da “mutação das formas”; do apocalipse criado dentro de nós: “Descubro
dentro brinquedos partidos, / mais do que os deixados pela infância. / Carrinhos
e bonecas, dardos, arcos e enigmas / desarrumados e sujos dizendo-me que /
crescer é aceitar que somos piores / e mais pequenos do que o pensamento” (p.
16); da “separação em espaço e senso, rasgo tenso adrede” (p. 18); da essência
da política, onde “o poeta desce aos campos de trigo e cevada / para matar cada
ratazana com uma rima” (p. 21), do sorriso, do olhar, da brisa, da lágrima, do
toque, do silêncio, da palavra, da âncora, da ponte, do segredo, das memórias,
do odor; do “sofrer dores duras como as do parto, / saudoso das antigas crises
existenciais, / das que lembram livros e boa filosofia, / antes, durante e
depois de um jantar farto” (p. 26); do evitar das palavras metafísicas; da
alegoria da caverna, onde “Só as pessoas vêem, não os seus olhos: / estamos
sentados num filme de sombras / num futuro certo o Sol vai sucumbir / e todos
reclamam que nada importa / num tempo tão depois de agora” (p. 37); dos
milagres; da “autoridade do legislador a quem incumbem as definições legais”
(p. 42); da máquina de colar as asas nos anjos; do “argumento das mãos sujas à
origem do universo” (p. 45); do “impacte visual esperado sobre as superfícies”
(p. 51); dos construtores de almas, tendas onde os animais se abrigam, “ao lado
dos seus irmãos e dos seus medos” (p. 52); do cruzamento de perguntas e
respostas mal emparelhadas; da ficção metalúrgica, onde “as estátuas em bronze
da santidade e do pecado, / sobrevivas por séculos ao santo e ao pecador em
pessoa” (p. 64); do “pássaro pesado sem asa” e do “navio ferido sem vela”; do
haver um ar de luz nas palavras; da escada que não nos leva a lado nenhum:
“Mais exacta e capciosamente, / a escada leva à copa das árvores / onde só
habitam pássaros (e) refugiados” (p. 75); da fábrica do mundo, onde “as
linguagens, como os continentes, derivam e apartam-se” (p. 76); e, a terminar,
do fragmento de uma biologia dos monstros antigos, onde poderá perguntar se
“estará no poder da tua [nossa] fábrica / compreender a génese ao ponto / de
estruturas corporais espantosas resultarem, / produzindo novos monstros
antigos, / metade palavra metade silêncio, / vivendo ora nos teus ora nos meus
medos?” (p. 79). E, porque temos a noção do limite da nossa contingência (em
oposição ao necessário), por aqui nos ficamos, deixando aos outros possíveis
leitores deste magnífico – para nós, claro – livro de poesia, a liberdade de
interpretação, mesmo que não se venha a saber “quem move o mundo”.
Tal como aconteceu com
Eduardo Pitta, também nós fomos instigados à leitura deste “Monstros Antigos” do
nosso homónimo Porfírio Silva, e gostamos.
Nota máxima… Leitura
que se recomenta!
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