“Porque não posso deixar de
supor, apenas soam tais palavras, que a conclusão se refere ao que é
significado por essas duas sílabas, em virtude daquela lei que tem muita força
na ordem da natureza, a saber, que ouvidos os sinais, o pensamento se dirija
para as coisas significadas”
Santo Agostinho (In «O
Mestre», Cap. VIII)
Ao propor-se
esclarecer seu filho Adeodato [N. 372 – m. 389], quanto à possível confusão
assacada ao sentido e intenção do desenvolvimento do diálogo, como se de
exercícios meramente dialécticos se tratassem, Santo Agostinho chama a sua
atenção para o facto das disputas argumentativas dos que se dedicam ao jogo dos
raciocínios e das palavras – Mas é difícil
nesta altura dizer aonde pretendo chegar contigo, ao longo de tantos rodeios.
Com efeito, talvez julgues que estamos a brincar, e que para assim dizer
desviamos o espírito de coisas sérias, com certas questiúnculas infantis; ou
então, que buscamos algum bem diminuto ou medíocre –, não reflectirem o
objecto de atingir uma vida venturosa e sempiterna, conseguida simbolicamente
pela subida de degraus, tendo Deus como guia, ou seja, a Verdade. Nesse
sentido, Santo Agostinho propõe-se, de parceria com seu filho Adeodato, em
investigar as coisas que, não sendo sinais, são “significadas com sinais, não
outros sinais, mas as coisas a que chamamos significáveis”. Na sequência desse
desafio, Santo Agostinho começa pela palavra «homem», questionando seu filho se
«homem é homem» ou – perante a sua resposta afirmativa – se não seria antes o
resultado da união das sílabas «ho» e «mem». E, desta vez, Adeodato ao
responder negativamente escusar-se-ia (e/ou recusar-se-ia) em ser definido por
duas sílabas: Mas como me impediria essa
ambiguidade, se eu respondi a uma coisa e outra? Com efeito, o homem é
inteiramente homem; essas duas sílabas não são senão duas sílabas; e aquilo que
significam não é senão a realidade existente. Maria Leonor Xavier – autora
da introdução e comentários –, quando se refere à ordem da linguagem em «O
Mestre», está em poder parecer que a discussão em torno das palavras não passe
senão de uma digressão preliminar à apresentação do seu principal teor: a
doutrina do Mestre Interior. Todavia, e ainda segundo a ilustre catedrática, a
investigação conduzida sobre a função significante das palavras proporciona-nos
mais do que um exercício propedêutico das forças do espírito, na medida em que
descobre elementos de uma ordem racional da linguagem. E prossegue: entre esses elementos, destacam-se duas
regras de linguagem que regem a função de significação das palavras: a regra da
nominação e a regra da comunicação. Por aquilo que apreendemos em Santo
Agostinho, a regra da nominação (podem significar nomeando) não é tão evidente
como a regra da comunicação (uma regra do pensamento). Por isso, mais
importante que as palavras é o conhecimento, sendo que as palavras ao serem
meramente remissivas, estimulam-nos apenas o conhecimento e só têm valor em
função do mesmo. Por outras palavras – com as devidas desculpas pela
redundância –, e ainda segundo o que apreendemos, se não houver um conhecimento
prévio, as palavras não têm valor. No fundo, as palavras só servem enquanto
instrumento das coisas. Ao constatarmos com “realidades conhecidas sem sinal”
em Santo Agostinho, concluiremos que é possível conhecer as coisas à letra sem
a contaminação da linguagem. Para ele, o poder da palavra reside não nela
própria, mas na realidade mesma da qual ela é sinal.
Com a envolvência
dicotómica, introduz-se assim a necessidade em distinguir quando uma palavra é
pensada apenas segundo o som ou letras pelas quais se forma, ou quando é pensada
pela realidade que significa. Imbuídos da noção dessa mesma dicotomia,
estaremos em concordar com Maria Leonor Xavier quando afirma que “O Mestre” é,
ademais, um diálogo que conta com um interlocutor muito especial, o filho
adolescente de Santo Agostinho, Adeodato: Tópicos gramaticais são naturalmente
acessíveis a Adeodato, embora o diálogo pretenda exibir a sua instrução
disciplinar do que manifestar as suas qualidades filosóficas, de acordo com os
novos propósitos pedagógicos que animar o autor. Se Adeodato assevera que
apenas se deve responder ao que as palavras significam, Santo Agostinho afirma-se
pela distinção clara entre as palavras e/ou a sua função gramatical e a
realidade que esses sinais significam: Para
omitir outras razões, se a minha primeira pergunta a tivesses tomado toda pelo
aspecto das sílabas que soam, nada me terias respondido; efectivamente poderia
até parecer-te que também eu nada tinha perguntado. Agora porém, quando eu fiz
ressoar três palavras, uma das quais repeti ao inquirir – se homem é homem –
que a palavra central e a final não as tomaste segundo os sinais mesmos, mas
segundo a realidade por elas significada, é manifesto mesmo só por isto, que
imediatamente julgaste dever responder à pergunta, certo e confiante –
citamos Santo Agostinho.
Parafraseando
Maria Leonor Xavier, estaremos em afirmar que através das palavras, não só se
atribuem denominações como também se pode dizer ou chegar à verdade. Segundo a
mesma autora, essa relação entre o discurso e verdade requer uma mediação pelo
processo do conhecimento. Não é por acaso que graças às investigações
filosóficas de Ludwig Wittgenstein, Santo Agostinho é conhecido como tendo
escrito sobre a filosofia do tempo e da linguagem. Para se perceber melhor a
noção entre sinais e realidades em Santo Agostinho, tomaremos em referência a
abordagem que Peter J. King faz a propósito do conceito de linguagem neste
“douto” da Igreja Católica: A sua
abordagem da linguagem está de acordo com o modelo do período, envolvendo o
pensamento de que as línguas humanas fazem duas coisas: servem para representar
ideias e pensamento e representam a estrutura dos pensamentos, na medida em que
estes são «vozes internas» em si mesmos em qualquer língua, que são tornados
públicos pelas nossas verbalizações linguísticas. [...] A linguagem [em Santo Agostinho] consiste no último tipo de signo, cuja natureza
é totalmente convencional. Aquilo que exactamente se passa na mente muda no
decurso do pensamento de Agostinho e não é fácil de determinar.
Tendo em
atenção a necessária separação entre sinais e realidades e em resposta à
interpelação de seu filho Adeodato, quando lhe pergunta “porque nos fere então
o espírito quando se diz – portanto não és homem – uma vez que segundo o que
foi admitido, nada de mais verdadeiro se podia dizer?”, Santo Agostinho apela
para a necessidade dessa mesma distinção (e/ou necessária separação) afirmando
que porque não posso deixar de supor,
apenas soam tais palavras, que a conclusão se refere ao que é significado por
essas duas sílabas, em virtude daquela lei que tem muita força na ordem da
natureza, a saber, que ouvidos os sinais, o pensamento se dirige para as coisas
significadas – citamos.
Para
concluirmos da melhor forma o pretenso comentário (diríamos antes, devaneio) ao
capítulo VIII d’O Mestre, citaremos António Soares Pinheiro, a dado momento da
introdução ao referido diálogo, inserido em Opúsculos Selectos da Filosofia
Medieval quando nos diz: “Analisando o mundo do conhecimento, havia já
distinguido em O Mestre duas categorias de verdades, as sensoriais e as
inteligíveis. Interiorizando-se mais na consciência, descobre entre as verdades
inteligíveis as «verdades eternas», último e irredutível fundamento de toda a
verdade e certeza”. Segundo o mesmo autor, Santo Agostinho não foi apenas
buscar à consciência as certezas fundamentais; o verdadeiro objecto da
filosofia ficou sendo para ele a mesma consciência, cujas profundidades e
mistérios competia à inteligência desvendar.
Hoje,
infelizmente, as palavras, a linguagem, os sinais e a realidades, são dados ao
homem para dissimular vulgaridades, levando à adversidade e à resignação!
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