Monday, February 17, 2014

Rousseau: do pecado do paraíso, ao paraíso sem pecado

“Rousseau introduziu uma dimensão qualitativa à heterodoxia religiosa da época, tornando-a mais organizada, agressiva e perigosa”

Fernando Augusto Machado

Foi através da obra «Rousseau em Portugal», do Professor Doutor Fernando Augusto Machado, catedrático jubilado da Universidade do Minho, o qual tivemos o prazer de conhecer e com ele aprender, que encontramos o condimento necessário à apreciação do terceiro capítulo dessa mesma obra – «Antropologia: do pecado do paraíso, ao paraíso sem pecado» – e que, ao mesmo tempo, nos levou a questionar até que ponto podemos encontrar razões, ao tempo, que demonstrem causas dos poderes político e religioso em Portugal, para temerem as obras de Rousseau. Se tomarmos em linha de conta que, como afirma o autor na introdução, com Rousseau não se pode privar sem paixão, independentemente do sentido que a oriente: pelo seu génio, pelo relevo alcançado, pela diferença, pela controvérsia, pela provocação, pela “loucura”, facilmente depreenderemos que muitas teriam sido as razões que levaram os poderes político e religioso em Portugal, a temerem as obras e, sobretudo, o pensamento de Rousseau.
Começando pelo desclassificado «Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens» – sendo que o concurso a que Rousseau se propôs com esta obra foi ganho por Grosley que defendeu exactamente a mesma tese de Rousseau –, discurso esse que acabou por lhe valer o título póstumo de fundador das ciências do homem. Sobre o pretexto do elemento lei natural Rousseau vai construir a sua teoria antropológica: Sendo o homem o elemento de convergência central do pensamento rousseauniano e, nessa sequência, o que lhe dá unidade, vai ser também a sua teoria do homem o núcleo mais fecundo de controvérsia e de definição de ataque dos seus opositores. De facto, o entusiasmo pela História Natural assente na construção da ideia de homem como criatura da natureza, como elemento integrado na grande cadeia natural dos seres, levaria ao furor da produção e das leituras, de que é exemplo a Histoire Naturalle de Buffon, obra que viria a merecer a ira condenatória da Faculdade de Teologia de Paris, em Janeiro de 1751, e que fez nascer uma retratação estratégica do autor, publicada em Março de 1753 no IV volume da obra. A teoria do homem natural de Rousseau vai no sentido de um referencial qualitativo relativamente ao naturalismo da época, dado que mais que definir ou conhecer a história do homem natural, o mesmo filósofo propõe que se realize uma nova religião, uma nova educação e uma nova moral. Segundo Fernando Machado, é através desta projecção prática para uma nova política que reside a dimensão mais revolucionária de Rousseau e através da qual germinaram com maior fecundidade – aquilo que Fernando Machado chama – as sementes da violência que em vida o perseguiram e depois o anatemizaram: Neste sentido, trata-se de uma teoria que vale sobretudo pelo não dito, pelas implicitudes que se escondem na “quimera” e que se manifestam a posteriori. Daí as frequentes leituras ingénuas dos que se movem apenas nas patências dos conteúdos, julgados como criação da bizarria ou loucura de um espírito fraco que se entretém a insultar a humanidade!


De notar ainda que, para este ilustre catedrático da Universidade do Minho, o paradigma antropológico rousseauniano afasta-se radicalmente dos padrões existentes a três níveis: nas perspectivas metodológicas da sua construção; nos pressupostos e na definição da essência do seu objecto, a natureza humana; nos objectivos que pretende servir. Na metodologia de construção, Rousseau pretende adoptar uma metodologia de teor genético na busca da natureza originária, de forma a descortinar a verdadeira essência do ser, ou seja, a sua natureza, perspectivada no desenvolvimento histórico-social do homem, em detrimento do paradigma bíblico do homem perfeito da criação: Através desta teoria do homem natural, Rousseau atribui ao indivíduo homem um conjunto de atributos ou “direitos” que são anteriores à sua realidade social e que são insusceptíveis de modificação sem que isso determine a mudança da própria essência. Por outro lado, para este mesmo filósofo, o conceito de natureza do homem nada tem a ver com o conceito de homem natural, sendo que ao primeiro lhe é inerente uma compreensão muito mais alta, substantivada através de potencialidades inactuais ao segundo, como sejam, entre outras, a razão, a sociabilidade e a linguagem. Perante estas perspectivas, fácil será constatar o incómodo para os detentores dos “padrões morais” existentes na época.
Não admira nada toda esta controvérsia, dado que Rousseau carregava o conceito de realismos e positividades, remetendo o estado da natureza para uma natureza desdivinizada: Apresentando disponibilidades potenciais constitutivas de manifesta superioridade, o homem da natureza assentava, todavia, numa base próxima da animalidade em termos de disponibilidade actual, nomeadamente no que respeita à racionalidade. Substituindo a racionalidade pela liberdade e perfectibilidade da espécie, Rousseau acabou por projectar o homem numa historicidade incompatível com o Génesis. Por exemplo, o mesmo filósofo considera a família como o mais antigo grupo societário e o único natural: Só que a sua constituição não é fruto do princípio actuante de uma sociabilidade natural. É antes instrumento ao serviço de uma necessidade vital inerente ao princípio de conservação da espécie e do indivíduo. Outro facto a realçar, enquanto que para a ortodoxia cristã o estado de corrupção obrigava a uma mudança de sentido no desenvolvimento humano, ou seja, implicava a definição prévia de metas e fins exteriores ao próprio homem, para as doutrinas naturalistas foram firmando o princípio do desenvolvimento espontâneo com ou sem intervenção divina: A conjugação deste último aspecto depurado da intervenção imediata do divino com o princípio da bondade natural permitiu a Rousseau a elaboração de uma antropologia não finalista e liberta de qualquer orientação transcendental.
Por estas e outras razões, facilmente constataremos que Rousseau foi um nome que marcou a modernidade, quer no campo antropológico, político, ou mesmo religioso.

E Portugal não fugiu à regra!   

No comments: