“Rousseau introduziu uma
dimensão qualitativa à heterodoxia religiosa da época, tornando-a mais organizada,
agressiva e perigosa”
Fernando Augusto Machado
Foi através da
obra «Rousseau em Portugal», do Professor Doutor Fernando Augusto Machado,
catedrático jubilado da Universidade do Minho, o qual tivemos o prazer de
conhecer e com ele aprender, que encontramos o condimento necessário à
apreciação do terceiro capítulo dessa mesma obra – «Antropologia: do pecado do
paraíso, ao paraíso sem pecado» – e que, ao mesmo tempo, nos levou a questionar
até que ponto podemos encontrar razões, ao tempo, que demonstrem causas dos
poderes político e religioso em Portugal, para temerem as obras de Rousseau. Se
tomarmos em linha de conta que, como afirma o autor na introdução, com Rousseau
não se pode privar sem paixão, independentemente do sentido que a oriente: pelo
seu génio, pelo relevo alcançado, pela diferença, pela controvérsia, pela provocação,
pela “loucura”, facilmente depreenderemos que muitas teriam sido as razões que
levaram os poderes político e religioso em Portugal, a temerem as obras e,
sobretudo, o pensamento de Rousseau.
Começando pelo
desclassificado «Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os
homens» – sendo que o concurso a que Rousseau se propôs com esta obra foi ganho
por Grosley que defendeu exactamente a mesma tese de Rousseau –, discurso esse
que acabou por lhe valer o título póstumo de fundador das ciências do homem.
Sobre o pretexto do elemento lei natural Rousseau vai construir a sua teoria
antropológica: Sendo o homem o elemento de convergência central do pensamento
rousseauniano e, nessa sequência, o que lhe dá unidade, vai ser também a sua teoria
do homem o núcleo mais fecundo de controvérsia e de definição de ataque dos seus
opositores. De facto, o entusiasmo pela História Natural assente na construção
da ideia de homem como criatura da natureza, como elemento integrado na grande
cadeia natural dos seres, levaria ao furor da produção e das leituras, de que é
exemplo a Histoire Naturalle de Buffon,
obra que viria a merecer a ira condenatória da Faculdade de Teologia de Paris,
em Janeiro de 1751, e que fez nascer uma retratação estratégica do autor,
publicada em Março de 1753 no IV volume da obra. A teoria do homem natural de
Rousseau vai no sentido de um referencial qualitativo relativamente ao
naturalismo da época, dado que mais que definir ou conhecer a história do homem
natural, o mesmo filósofo propõe que se realize uma nova religião, uma nova
educação e uma nova moral. Segundo Fernando Machado, é através desta projecção
prática para uma nova política que reside a dimensão mais revolucionária de
Rousseau e através da qual germinaram com maior fecundidade – aquilo que
Fernando Machado chama – as sementes da violência que em vida o perseguiram e
depois o anatemizaram: Neste sentido, trata-se de uma teoria que vale sobretudo
pelo não dito, pelas implicitudes que se escondem na “quimera” e que se manifestam
a posteriori. Daí as frequentes leituras ingénuas dos que se movem apenas nas
patências dos conteúdos, julgados como criação da bizarria ou loucura de um
espírito fraco que se entretém a insultar a humanidade!
De notar ainda
que, para este ilustre catedrático da Universidade do Minho, o paradigma
antropológico rousseauniano afasta-se radicalmente dos padrões existentes a
três níveis: nas perspectivas metodológicas da sua construção; nos pressupostos
e na definição da essência do seu objecto, a natureza humana; nos objectivos
que pretende servir. Na metodologia de construção, Rousseau pretende adoptar
uma metodologia de teor genético na busca da natureza originária, de forma a
descortinar a verdadeira essência do ser, ou seja, a sua natureza, perspectivada
no desenvolvimento histórico-social do homem, em detrimento do paradigma
bíblico do homem perfeito da criação: Através desta teoria do homem natural,
Rousseau atribui ao indivíduo homem um conjunto de atributos ou “direitos” que
são anteriores à sua realidade social e que são insusceptíveis de modificação
sem que isso determine a mudança da própria essência. Por outro lado, para este
mesmo filósofo, o conceito de natureza do homem nada tem a ver com o conceito
de homem natural, sendo que ao primeiro lhe é inerente uma compreensão muito
mais alta, substantivada através de potencialidades inactuais ao segundo, como
sejam, entre outras, a razão, a sociabilidade e a linguagem. Perante estas
perspectivas, fácil será constatar o incómodo para os detentores dos “padrões
morais” existentes na época.
Não admira
nada toda esta controvérsia, dado que Rousseau carregava o conceito de
realismos e positividades, remetendo o estado da natureza para uma natureza
desdivinizada: Apresentando disponibilidades potenciais constitutivas de
manifesta superioridade, o homem da natureza assentava, todavia, numa base
próxima da animalidade em termos de disponibilidade actual, nomeadamente no que
respeita à racionalidade. Substituindo a racionalidade pela liberdade e
perfectibilidade da espécie, Rousseau acabou por projectar o homem numa
historicidade incompatível com o Génesis. Por exemplo, o mesmo filósofo
considera a família como o mais antigo grupo societário e o único natural: Só
que a sua constituição não é fruto do princípio actuante de uma sociabilidade
natural. É antes instrumento ao serviço de uma necessidade vital inerente ao
princípio de conservação da espécie e do indivíduo. Outro facto a realçar,
enquanto que para a ortodoxia cristã o estado de corrupção obrigava a uma
mudança de sentido no desenvolvimento humano, ou seja, implicava a definição
prévia de metas e fins exteriores ao próprio homem, para as doutrinas
naturalistas foram firmando o princípio do desenvolvimento espontâneo com ou
sem intervenção divina: A conjugação deste último aspecto depurado da
intervenção imediata do divino com o princípio da bondade natural permitiu a
Rousseau a elaboração de uma antropologia não finalista e liberta de qualquer
orientação transcendental.
Por estas e
outras razões, facilmente constataremos que Rousseau foi um nome que marcou a
modernidade, quer no campo antropológico, político, ou mesmo religioso.
E Portugal não
fugiu à regra!
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