Friday, October 24, 2014

Padre António Vieira e a influência sobre o pensamento de Fernando Pessoa e Agostinho da Silva!...

«Quem despender em banalidades de linguagem a quinta-essência do seu talento, ou ostentar em cambiantes de estilo e formas opalinas de romance os mais rútilos lampejos da sua inteligência, a esse sim, a esse é que no conceito moderno são decretadas as honras e concedidos os foros de verdadeiro orador!»

Padre Gonçalo Alves

Mesmo que nos deixemos levar pela riqueza da oratória sacra e de vernácula, é sempre difícil interpretar qualquer um dos sermões do Padre António Vieira, aquele a quem Fernando Pessoa deu o epíteto de «Imperador da Língua Portuguesa». Tal como escreveria um dia o Padre Gonçalo Alves, em prefácio ao Tomo I das Obras Completas deste insigne pregador, nem antes nem depois do Padre António Vieira, a eloquência sagrada culminou mais triunfantemente nos púlpitos do nosso país. E quando recorremos à “alegoria” do Espírito Santo, lembrar-nos-emos da forma como o Padre António Vieira influenciaria o pensamento de Fernando Pessoa e consequentemente, pela empatia, o de Agostinho da Silva. O Padre António Vieira, ao exortar os futuros missionários a deixarem os «estudos da Europa» pela «escola do Céu», onde só o Espírito Santo é mestre e outorgador das graduações que não se dão «na Baía, nem em Coimbra, nem em Salamanca, senão nas aldeias de palha, nos desertos dos sertões, nos bosques das gentilidades», romperia com as tradições escolásticas tardias onde havia sido educado, sendo que, em face desta “convicção”, a dialéctica abstracta não o seduziria. Consta-se mesmo que ele, aquando estudante, chegou a redigir um compêndio de Filos e outro de Teologia, para uso pessoal.
Há nos sermões do Padre António Vieira – e o Sermão da Sexagésima (VII) não foge à regra – uma evidente multiplicidade de conhecimentos, que facilmente se descobre nos subsídios tanto sagrados como profanos que “adornam” esses mesmos sermões. Tal como um dia escreveria Francisco Freire de Carvalho, nos sermões do Padre António Vieira se deixa ver «uma frase pura, uma imaginação fecunda em pensamentos novos, variados, vigorosos, enérgicos, pinturas vivas, descrições brilhantes, posto que muitas vezes todo este aparato de riqueza oratória seja empregado em subtilizar e provar com pouco acerto, em sustentar e engrandecer uma maneira de pensar que lhe particularíssima e na qual imita o corruptor da eloquência romana, o filósofo Sécena; donde resulta que, devendo o Padre António Vieira ser havido por um dos mais perfeitos mestres da pura e bela locução portuguesa, não assim deve ser acolhido às cegas, e sem grande crítica, para modelo de sã e verdadeira eloquência». Daí, como afirmara Eça de Queirós, os seus sermões ter encantado a gente inculta do Brasil, mas também a casta requintada dos prelados de Roma.


O engenho subtil e penetrante que possuía, fez dele homem singular e extraordinário. Propugnador da liberdade dos índios acentuou nos seus sermões uma espécie de campanha contra os abusos de exploradores, aliás, atitude que, circunstancialmente, originou contra ele caluniosas agressões. A opulência universal da língua pátria, face à alteza do pensamento filosófico, tem nele – por afirmação de alguns outros pensadores –, a par de Luís de Camões, a máxima glória literária de Portugal.
Voltando ao sermão, e tomando como alegoria os Apóstolos pescadores de homens, sentimos na linguagem argumentativa do Padre António Vieira uma demonstração e/ou raciocínio rigoroso, numa ascensão do sensível para o inteligível (Platão). A lógica formal (Escolástica) é ultrapassada pela Dialéctica, aquela que Pedro da Fonseca soube afirmar como émula da Metafísica. A ciência de princípios, como inventário sistemático de todos os conhecimentos provenientes da razão pura ou doutrina da essência das coisas, é ultrapassada pela arte de raciocinar. E isso se constata neste sermão do Padre António Vieira: A pregação tem umas cousas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves, e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça. As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.
Com isto, o Padre António Vieira procura abrir ao entendimento da pessoa em si, enquanto ser individual, construtor das suas próprias redes, e, parafraseando Paulo Borges, no seu grande tema “adunam-se numa muito livre exegese a apocalíptica arcaica e judaico-cristã, a patrística da renovação da criação e do conhecimento temporal do Corpo Místico de Cristo, e as múltiplas formas das escatologias suas contemporâneas, acentuando a dimensão terrena do Reino de Deus, por vezes explicitamente filiadas em Joaquim de Flora e no joaquimismo”. Ainda segundo Paulo Borges, o Padre António Vieira é exemplo vivo de homem total e do universalismo português («Para nascer, Portugal. Para morrer, todo o mundo»), sendo que a sua vida e a sua obra formam uma unidade onde o pensamento não detém a maior parte.
Tal como afirmara Pedro da Fonseca “os universais são por nós conhecidos a partir dos singulares, em que existem, por abstração ou certa separação, não todavia real, mas de razão e de consideração ”, também o Padre António Vieira, ao abraçar as missões excluiria as carreiras académicas, pelo facto dos muitos anos que aí gravitasse, segundo ele, perder-se-iam incontáveis almas. A universalidade a partir do singular manifesta-se na singularidade, ainda que universal, do Espírito Santo: Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais.
Conhecer o Padre António Vieira é conhecer os seus sermões. Segundo o Padre Gonçalo Alves, só lendo os seus sermões é que podemos avaliar e compreender “a desmesurada proporção que atingia o vulto sublime da sua imensa glória, quando os auditórios fremiam e palpitavam ansiosos sob a influência magnética do seu verbo, os seus olhos fuzilavam relâmpagos de paixão, no seu gesto passava o raio que fulmina e a majestade que se impõe e a sua fronte rebrilhava circuncingida com essa divina auréola fulgentíssima que depois do ciclo ateniense, cingiu e iluminou a cabeça de Agostinho, a cabeça de Crisóstomo e poucas mais no mundo”.
Através da leitura deste sermão concluímos que o Padre António Vieira rompe assim com as regras predefinidas que “obrigava” à pregação das normas teológicas, para se manifestar pela defesa dos valores e princípios permanentes de uma doutrina social da Igreja. No fundo, o Espírito Santo acaba por funcionar como a forma de iluminar a – ou a iluminura da – realidade com que o Padre António Vieira se expressa, apostando, de uma forma clara, na filosofia das pessoas. Põe de lado a retórica e as ideias desencarnadas, para apostar na filosofia da vida: Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois porque na cabeça e não boca que é o lugar da língua? Porque o que há-de dizer o pregador, não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca, pára nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento.
         Padre António Vieira, Primus inter pares, diremos nós!

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