«Quem despender em banalidades de linguagem a
quinta-essência do seu talento, ou ostentar em cambiantes de estilo e formas
opalinas de romance os mais rútilos lampejos da sua inteligência, a esse sim, a
esse é que no conceito moderno são decretadas as honras e concedidos os foros
de verdadeiro orador!»
Padre Gonçalo Alves
Mesmo que nos deixemos
levar pela riqueza da oratória sacra e de vernácula, é sempre difícil
interpretar qualquer um dos sermões do Padre António Vieira, aquele a quem
Fernando Pessoa deu o epíteto de «Imperador
da Língua Portuguesa». Tal como escreveria um dia o Padre Gonçalo Alves, em
prefácio ao Tomo I das Obras Completas deste insigne pregador, nem antes nem
depois do Padre António Vieira, a
eloquência sagrada culminou mais triunfantemente nos púlpitos do nosso país.
E quando recorremos à “alegoria” do Espírito
Santo, lembrar-nos-emos da forma como o Padre António Vieira influenciaria
o pensamento de Fernando Pessoa e consequentemente, pela empatia, o de
Agostinho da Silva. O Padre António Vieira, ao exortar os futuros missionários
a deixarem os «estudos da Europa» pela «escola do Céu», onde só o Espírito Santo é mestre e outorgador das
graduações que não se dão «na Baía, nem em Coimbra, nem em Salamanca, senão nas
aldeias de palha, nos desertos dos sertões, nos bosques das gentilidades»,
romperia com as tradições escolásticas tardias onde havia sido educado, sendo
que, em face desta “convicção”, a dialéctica abstracta não o seduziria.
Consta-se mesmo que ele, aquando estudante, chegou a redigir um compêndio de Filos e outro de Teologia, para uso pessoal.
Há nos sermões do Padre
António Vieira – e o Sermão da Sexagésima
(VII) não foge à regra – uma evidente multiplicidade de conhecimentos, que
facilmente se descobre nos subsídios tanto sagrados como profanos que “adornam”
esses mesmos sermões. Tal como um dia escreveria Francisco Freire de Carvalho,
nos sermões do Padre António Vieira se deixa ver «uma frase pura, uma imaginação fecunda em pensamentos novos, variados,
vigorosos, enérgicos, pinturas vivas, descrições brilhantes, posto que muitas
vezes todo este aparato de riqueza oratória seja empregado em subtilizar e
provar com pouco acerto, em sustentar e engrandecer uma maneira de pensar que
lhe particularíssima e na qual imita o corruptor da eloquência romana, o
filósofo Sécena; donde resulta que, devendo o Padre António Vieira ser havido
por um dos mais perfeitos mestres da pura e bela locução portuguesa, não assim
deve ser acolhido às cegas, e sem grande crítica, para modelo de sã e
verdadeira eloquência». Daí, como afirmara Eça de Queirós, os seus sermões
ter encantado a gente inculta do Brasil, mas também a casta requintada dos
prelados de Roma.
O engenho subtil e
penetrante que possuía, fez dele homem singular e extraordinário. Propugnador
da liberdade dos índios acentuou nos seus sermões uma espécie de campanha
contra os abusos de exploradores, aliás, atitude que, circunstancialmente,
originou contra ele caluniosas agressões. A opulência universal da língua
pátria, face à alteza do pensamento filosófico, tem nele – por afirmação de
alguns outros pensadores –, a par de Luís de Camões, a máxima glória literária
de Portugal.
Voltando ao sermão, e
tomando como alegoria os Apóstolos pescadores de homens, sentimos na linguagem
argumentativa do Padre António Vieira uma demonstração e/ou raciocínio
rigoroso, numa ascensão do sensível para o inteligível (Platão). A lógica
formal (Escolástica) é ultrapassada pela Dialéctica, aquela que Pedro da
Fonseca soube afirmar como émula da Metafísica. A ciência de princípios, como
inventário sistemático de todos os conhecimentos provenientes da razão pura ou
doutrina da essência das coisas, é ultrapassada pela arte de raciocinar. E isso
se constata neste sermão do Padre António Vieira: A pregação tem umas cousas de mais peso e de mais fundo, e tem outras
mais superficiais e mais leves, e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer
quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça. As
razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar.
As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e
os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.
Com isto, o Padre
António Vieira procura abrir ao entendimento da pessoa em si, enquanto ser
individual, construtor das suas próprias redes, e, parafraseando Paulo Borges,
no seu grande tema “adunam-se numa muito livre exegese a apocalíptica arcaica e
judaico-cristã, a patrística da renovação da criação e do conhecimento temporal
do Corpo Místico de Cristo, e as múltiplas formas das escatologias suas contemporâneas,
acentuando a dimensão terrena do Reino de Deus, por vezes explicitamente
filiadas em Joaquim de Flora e no joaquimismo”. Ainda segundo Paulo Borges, o
Padre António Vieira é exemplo vivo de homem total e do universalismo português
(«Para nascer, Portugal. Para morrer, todo o mundo»), sendo que a sua vida e a
sua obra formam uma unidade onde o pensamento não detém a maior parte.
Tal como afirmara Pedro
da Fonseca “os universais são por nós conhecidos a partir dos singulares, em
que existem, por abstração ou certa separação, não todavia real, mas de razão e
de consideração ”, também o Padre António Vieira, ao abraçar as missões
excluiria as carreiras académicas, pelo facto dos muitos anos que aí
gravitasse, segundo ele, perder-se-iam incontáveis almas. A universalidade a
partir do singular manifesta-se na singularidade, ainda que universal, do
Espírito Santo: Uma língua só sobre
Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André,
porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe,
porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais.
Conhecer o Padre
António Vieira é conhecer os seus sermões. Segundo o Padre Gonçalo Alves, só
lendo os seus sermões é que podemos avaliar e compreender “a desmesurada
proporção que atingia o vulto sublime da sua imensa glória, quando os
auditórios fremiam e palpitavam ansiosos sob a influência magnética do seu
verbo, os seus olhos fuzilavam relâmpagos de paixão, no seu gesto passava o
raio que fulmina e a majestade que se impõe e a sua fronte rebrilhava
circuncingida com essa divina auréola fulgentíssima que depois do ciclo
ateniense, cingiu e iluminou a cabeça de Agostinho, a cabeça de Crisóstomo e
poucas mais no mundo”.
Através da leitura
deste sermão concluímos que o Padre António Vieira rompe assim com as regras
predefinidas que “obrigava” à pregação das normas teológicas, para se
manifestar pela defesa dos valores e princípios permanentes de uma doutrina
social da Igreja. No fundo, o Espírito
Santo acaba por funcionar como a forma de iluminar a – ou a iluminura da –
realidade com que o Padre António Vieira se expressa, apostando, de uma forma
clara, na filosofia das pessoas. Põe de lado a retórica e as ideias
desencarnadas, para apostar na filosofia da vida: Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam
do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na
cabeça. Pois porque na cabeça e não boca que é o lugar da língua? Porque o que
há-de dizer o pregador, não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela
boca, mas da cabeça. O que sai só da boca, pára nos ouvidos; o que nasce do
juízo penetra e convence o entendimento.
Padre António Vieira, Primus inter
pares, diremos nós!
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