«1.
Tudo se dissipa nisso de onde provém, e todas as coisas se dissipam em virtude
do grau de culpabilidade, porque retribuem umas às outras o castigo e a
expiação pelas injustiças, consoante o tempo determina. / 2. O ilimitado (apeiron) é eterno. / 3. O ilimitado é
imortal e indissolúvel.»
Fragmentos de Anaximandro
In GOMES, Pinharanda – Filosofia Pré-Socrática. p.
126.
Anaximandro [N. Mileto,
c. 610 – m. 546 a.C.], filósofo grego, sucessor de Tales na direcção da Escola
de Mileto, criador do conceito de apeiron
(άπειρου), cujo significado, levado à letra, nos aponta para o infinito, “não no sentido matemático,
mas no de ilimitação ou indeterminação”, insere-se na conexão do nascimento da
filosofia naturalista e que, sendo tomado como exemplo, é apontado por Werner
Jaeger como a figura mais imponente dos físicos milesianos. José Nunes Carreira
vai mais longe, ao vincular Anaximandro à criação da noção do cosmos, quando
afirma uma ordem das coisas correspondente à que existe entre os homens: «donde
advém a origem ao ser, no mesmo sentido vai o acaso, segundo as determinações
do destino; pois um ao outro deve pagar castigo e pena, de acordo com a sentença
do tempo».
A tradição atribui a
Anaximandro a autoria de um livro com o título padrão Sobre a Natureza (c. 547 a.C.), a construção de um mapa-mundo, de
uma carta celeste, de um modelo esférico para representar os corpos celestes, o
primeiro a descobrir o equinócio e os solstícios e a introduzir o gnómon – já conhecido na Babilónia – na
Grécia, mas o que chegou até nós é indirecto e fragmentário. Referimo-nos ao
fragmento – no fundo, uma reconstrução de um texto tardio – que se revelou no
que há de mais enigmático na filosofia grega. G. S. Kirk dá-nos conta que parte
da informação fornecida por Teofrasto sobre a matéria originadora de
Anaximandro encontra-se em Simplício. No entanto, ainda hoje se discute se o
mesmo recebeu estes e outros extractos doxográficos semelhantes directamente de
uma versão de Teofrasto, ou por intermédio do comentário de Alexandre, hoje
perdido sobre a Física.
Luciano Crescenzo
define Anaximandro através dos seus fragmentos, cuja interpretação “deve ter
colocado em apuros mais que um historiador de filosofia”, como aquele que
concebeu os elementos como deuses sempre prontos a atacar os seus opostos: o Calor gostaria de dominar o Frio, o Seco
gostaria de dominar o Húmido e vice-versa, mas a necessidade domina-os a todos
e impõe-lhes que certas proporções permaneçam inalteráveis. E aqui, se nos
referimos ou aludimos à justiça, teremos que entender apenas o respeito pelos
limites estabelecidos, o ver mais longe do que um simples equilíbrio entre
elementos diferentes, como a «necessidade» e a «expiação», revelando no seu
pensamento o desejo místico de uma ordem suprema. Disso nos dá testemunho
Plutarco, quando descreve a visão do filósofo da escola Mileto, acerca do
nascimento do Universo: «Ele afirma que do Eterno se separaram o calor e o frio
e que uma esfera de fogo se espalhou em torno do ar que envolvia a Terra como a
cortiça envolve a árvore; depois, a esfera partiu-se e separou-se em círculos e
assim se formaram o Sol, a Lua e os astros».
Não é por acaso que
para Werner Jaeger, a concepção da Terra e do mundo em Anaximandro é uma
vitória do espírito geométrico. Segundo o mesmo autor, o mundo de Anaximandro é
construído segundo rigorosas proporções matemáticas. Num dos relatos de
Teofrasto, atribuído a Hipólito, afirma-se que o filósofo de Mileto dizia que o
princípio material das coisas que existem era uma natureza do apeiron, de que provêm os céus e o mundo
neles contidos e, esta natureza, para além de envolver todos os mundos, é
eterna e não envelhece. Daí, concluirmos que há uma pluralidade de inúmeros
mundos coexistentes, e a fonte da geração das coisas – citando Simplício – que
existem é aquela em que se verifica também a destruição «segundo a necessidade;
pois pagam o castigo e retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de
acordo com o decreto do Tempo».
Um facto curioso é que
José Trindade dos Santos ao referir-se aos filósofos Milénios, dá-os como os
iniciadores da reflexão filosófica na Grécia, mas, sempre vai dizendo que de
Tales, de Anaximandro, ou de Anaxímenes não nos chegou qualquer texto, com a
possível excepção de um fragmento atribuído a Anaximandro. No entanto, a
importância destes pensadores é inegável e universalmente reconhecida por todos
os estudiosos da tradição reflexiva grega, nomeadamente por Aristóteles, quando
a eles se refere, englobando-os no grupo dos «primeiros filósofos», com a
denominação de «físicos» ou «fisiólogos».
Embora muitos autores afirmem que do pouco
que resta do pensamento de Anaximandro nos impede de saber, de um modo certo e
objectivo, o que realmente pretendeu teorizar – ou dizer –, fica-nos a sensação
de uma concepção pré-científica do mundo. Para Copleston, a doutrina de
Anaximandro supõe um avanço em relação à doutrina do seu antecessor, Tales, que
ao superar a designação de um elemento determinado como primordial, chega a
conceber um infinito indeterminado, de que provêm todas as coisas, permitindo,
ainda, pelo menos responder de algum modo à velha questão de como o mundo
evolui a partir daquele «elemento primeiro».
Uma sugestão para os pseudo-divinizados
(quiçá, até na política) deste jardim à beira-mar plantado: Leiam um pouco dos
fragmentos de Anaximandro e talvez cheguem à conclusão que ele não confere
qualquer lugar às divindades dos mitos, dado que tende apenas a humanizar o seu
apeiron, a fim de explicar a ordem do
mundo. Daí, o princípio devia estar para lá de toda a realidade observável e
limitada, pois o apeiron sendo
indeterminado é infinito na duração, imortal e indestrutível, em movimento
perpétuo, sem ser infinitamente criador, nem infinito no espaço, revelando-se
numa espécie de enorme massa matricial que nela engendra o mundo (cosmos) e o
«orienta», o governa divinamente.
Não devemos ficar só
pelo De audito!
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