Saturday, October 11, 2014

A expiação da injustiça em Anaximandro!...

«1. Tudo se dissipa nisso de onde provém, e todas as coisas se dissipam em virtude do grau de culpabilidade, porque retribuem umas às outras o castigo e a expiação pelas injustiças, consoante o tempo determina. / 2. O ilimitado (apeiron) é eterno. / 3. O ilimitado é imortal e indissolúvel.»

Fragmentos de Anaximandro
In GOMES, Pinharanda – Filosofia Pré-Socrática. p. 126.

Anaximandro [N. Mileto, c. 610 – m. 546 a.C.], filósofo grego, sucessor de Tales na direcção da Escola de Mileto, criador do conceito de apeiron (άπειρου), cujo significado, levado à letra, nos aponta para o infinito, “não no sentido matemático, mas no de ilimitação ou indeterminação”, insere-se na conexão do nascimento da filosofia naturalista e que, sendo tomado como exemplo, é apontado por Werner Jaeger como a figura mais imponente dos físicos milesianos. José Nunes Carreira vai mais longe, ao vincular Anaximandro à criação da noção do cosmos, quando afirma uma ordem das coisas correspondente à que existe entre os homens: «donde advém a origem ao ser, no mesmo sentido vai o acaso, segundo as determinações do destino; pois um ao outro deve pagar castigo e pena, de acordo com a sentença do tempo».
A tradição atribui a Anaximandro a autoria de um livro com o título padrão Sobre a Natureza (c. 547 a.C.), a construção de um mapa-mundo, de uma carta celeste, de um modelo esférico para representar os corpos celestes, o primeiro a descobrir o equinócio e os solstícios e a introduzir o gnómon – já conhecido na Babilónia – na Grécia, mas o que chegou até nós é indirecto e fragmentário. Referimo-nos ao fragmento – no fundo, uma reconstrução de um texto tardio – que se revelou no que há de mais enigmático na filosofia grega. G. S. Kirk dá-nos conta que parte da informação fornecida por Teofrasto sobre a matéria originadora de Anaximandro encontra-se em Simplício. No entanto, ainda hoje se discute se o mesmo recebeu estes e outros extractos doxográficos semelhantes directamente de uma versão de Teofrasto, ou por intermédio do comentário de Alexandre, hoje perdido sobre a Física.
Luciano Crescenzo define Anaximandro através dos seus fragmentos, cuja interpretação “deve ter colocado em apuros mais que um historiador de filosofia”, como aquele que concebeu os elementos como deuses sempre prontos a atacar os seus opostos: o Calor gostaria de dominar o Frio, o Seco gostaria de dominar o Húmido e vice-versa, mas a necessidade domina-os a todos e impõe-lhes que certas proporções permaneçam inalteráveis. E aqui, se nos referimos ou aludimos à justiça, teremos que entender apenas o respeito pelos limites estabelecidos, o ver mais longe do que um simples equilíbrio entre elementos diferentes, como a «necessidade» e a «expiação», revelando no seu pensamento o desejo místico de uma ordem suprema. Disso nos dá testemunho Plutarco, quando descreve a visão do filósofo da escola Mileto, acerca do nascimento do Universo: «Ele afirma que do Eterno se separaram o calor e o frio e que uma esfera de fogo se espalhou em torno do ar que envolvia a Terra como a cortiça envolve a árvore; depois, a esfera partiu-se e separou-se em círculos e assim se formaram o Sol, a Lua e os astros».


Não é por acaso que para Werner Jaeger, a concepção da Terra e do mundo em Anaximandro é uma vitória do espírito geométrico. Segundo o mesmo autor, o mundo de Anaximandro é construído segundo rigorosas proporções matemáticas. Num dos relatos de Teofrasto, atribuído a Hipólito, afirma-se que o filósofo de Mileto dizia que o princípio material das coisas que existem era uma natureza do apeiron, de que provêm os céus e o mundo neles contidos e, esta natureza, para além de envolver todos os mundos, é eterna e não envelhece. Daí, concluirmos que há uma pluralidade de inúmeros mundos coexistentes, e a fonte da geração das coisas – citando Simplício – que existem é aquela em que se verifica também a destruição «segundo a necessidade; pois pagam o castigo e retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do Tempo».
Um facto curioso é que José Trindade dos Santos ao referir-se aos filósofos Milénios, dá-os como os iniciadores da reflexão filosófica na Grécia, mas, sempre vai dizendo que de Tales, de Anaximandro, ou de Anaxímenes não nos chegou qualquer texto, com a possível excepção de um fragmento atribuído a Anaximandro. No entanto, a importância destes pensadores é inegável e universalmente reconhecida por todos os estudiosos da tradição reflexiva grega, nomeadamente por Aristóteles, quando a eles se refere, englobando-os no grupo dos «primeiros filósofos», com a denominação de «físicos» ou «fisiólogos».
  Embora muitos autores afirmem que do pouco que resta do pensamento de Anaximandro nos impede de saber, de um modo certo e objectivo, o que realmente pretendeu teorizar – ou dizer –, fica-nos a sensação de uma concepção pré-científica do mundo. Para Copleston, a doutrina de Anaximandro supõe um avanço em relação à doutrina do seu antecessor, Tales, que ao superar a designação de um elemento determinado como primordial, chega a conceber um infinito indeterminado, de que provêm todas as coisas, permitindo, ainda, pelo menos responder de algum modo à velha questão de como o mundo evolui a partir daquele «elemento primeiro».
Uma sugestão para os pseudo-divinizados (quiçá, até na política) deste jardim à beira-mar plantado: Leiam um pouco dos fragmentos de Anaximandro e talvez cheguem à conclusão que ele não confere qualquer lugar às divindades dos mitos, dado que tende apenas a humanizar o seu apeiron, a fim de explicar a ordem do mundo. Daí, o princípio devia estar para lá de toda a realidade observável e limitada, pois o apeiron sendo indeterminado é infinito na duração, imortal e indestrutível, em movimento perpétuo, sem ser infinitamente criador, nem infinito no espaço, revelando-se numa espécie de enorme massa matricial que nela engendra o mundo (cosmos) e o «orienta», o governa divinamente.

Não devemos ficar só pelo De audito!   

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