«Meu método é assim necessariamente o inverso
daquele de inúmeros estudiosos que começam por extrair a cosmologia que
frequentemente se expressa em termos de ciclos mitológicos e, então, passam a
explicar rituais específicos como exemplos ou expressões de “modelos
estruturais” que encontraram nos mitos»
Victor W. Turner
Na nossa crónica de
hoje iremos abordar os rituais seculares como uma emanação do colectivo. De
facto, quando no tempo presente se questiona a secularização das chamadas
festas tradicionais, temos que ter em linha de conta que as mesmas, apesar de
eventualmente terem perdido a sua essência – no que diz respeito à ritualização
e/ou ao sagrado – face à sua inevitável inovação, assumem um forte pendor
profano e passam da sua essência ritual e sagrada para o “estádio” de lazer.
Contudo, há festas tradicionais que conservam o seu pendor ritual, de que são
exemplo as festas por altura do Natal e da Páscoa, sendo que esta última se
sobrepõe ao melancólico e triste dia dos Fiéis Defuntos. O antagonismo reside,
precisamente, na ancestral manifestação “espiritual/religiosa” da morte e
ressurreição. Outro facto a reter são as festas tradicionais, muitas vezes
carregadas de um forte simbolismo, revelado por práticas ancestrais de culto e
de fé, e de que são exemplo, principalmente, aquelas em que se comemoram santos
padroeiros.
Um “ritual secular”,
que encerra uma sacralidade intensa, fortemente inspirada na fé, é o culto da
água, revisitado no baptismo e no “banho santo”, de que tomaremos como exemplo
a festa anual de S. Bartolomeu, padroeiro da freguesia de Mar, concelho de Esposende,
distrito de Braga. Aqui, expressamo-nos no permanente conflito com aquilo que
nos é menos agradável reiterando esse sentimento na visualização e
personificação do “demo”. S. Bartolomeu, apóstolo que foi de Cristo, aparece
ligado à evangelização na Licaónia, na Índia e, de uma forma particular, na
Arménia, onde viria a ser martirizado, esfolado vivo. Embora não haja muitas
certezas quanto ao martírio e às suas deambulações geográficas,
iconograficamente é representado com uma faca (ou tridente, porque retirado ao
“diabo”) numa das mãos, com a sua pele noutra e o “diabo” acorrentado aos pés.
Geralmente o “demo” é representado com cabeça de cão, corpo de homem e rabo de
peixe. Esta forma singela de o representar é que levou à tradição de se afirmar
que no dia de S. Bartolomeu o “diabo anda à solta”.
S. Miguel e S.
Bartolomeu, por exemplo, desempenham um papel importante em termos de “rituais
seculares”. Ambos lutaram contra o lado oculto e tenebroso da guerra, da
tortura e da perseguição, plasmado na denominada figura do “diabo”. S. Miguel,
por exemplo, anda associado às colheitas dos frutos e sementeiras e S.
Bartolomeu marca o início das colheitas. Na capela de S. João d’Arga, esse
pequeno e deslumbrante santuário implantado no sopé do cabeço da Arga de S.
João, Caminha, e onde proliferam lendas maravilhosas – das quais destacamos a
do Santo Aginha –, existe uma imagem de S. Miguel Arcanjo com o demónio a seus
pés, apontando-lhe uma lança serrilhada. Este demónio tem cabeça de cão e corpo
de homem, mas dos seus dedos saem afiadas garras.
Como nos foi dado
constatar, no dia das festividades em honra de S. Bartolomeu (Mar), a nostalgia
festiva, ainda que passiva de algum cunho manifestamente cultural,
impulsionador à participação e exaltação colectivas, leva a que milhares de
pessoas comecem a afluir à Igreja do apóstolo mártir e por três vezes passem
por baixo do seu andor, como que simulando um regresso ao ventre materno. Por
três vezes dão também voltas à Igreja, no sentido contrário ao do movimento dos
ponteiros do relógio. Crianças e adultos de mãos dadas transportam frangos
(sobretudo negros ou pedreses – mas também os haviam de outra cor) envoltos em
saca, de plástico, com apenas a cabeça de fora, que alugam numa pequena e
improvisada “capoeira” instalada ao lado esquerdo do templo. Outros trazem-nos
de casa, engalanados numa cestinha de vime. A secularização da festa de S.
Bartolomeu reside, precisamente, no “Banho Santo”.
Dos seis “banhos
santos” que existiram em Portugal, apenas este é que subsiste. Ordinariamente,
a festa de S. Bartolomeu está sempre ligada à água. Por isso aparece sempre
junto aos rios, a nascentes ou ao mar. Tudo resulta de factores naturais. Isto
era uma romaria antiga e todos os dias os romeiros iam ao mar. Como,
normalmente, a romaria tem a duração de nove dias (novena), daí resulta o
número ímpar. Depois, quem não podia vir à romaria vinha num fim-de-semana.
Segundo Jean
Maisonneuve, ao referir-se a um inquérito europeu consagrado aos “valores do
tempo presente”, elaborado e sintetizado sob a orientação de J. Stoetzel,
alerta-nos para o facto de que o mesmo estudo introduz diversos elementos globais e específicos respeitantes às
atitudes religiosas – mais do que se refere às crenças do que às práticas.
Verifica-se em primeiro lugar que mais de 60% das pessoas inquiridas (numa
amostra que incide em nove países) afirmam possuir uma “certa religião” e
mantêm – digam-se elas crestes ou descrentes – valores judeu-cristãos sem disso
terem sempre uma nítida consciência. Daí, ser compreensível toda essa
apreensão, dado que muitas são as interpretações e as conveniências emocionais.
O frango, por exemplo, e segundo a opinião do antigo pároco da freguesia de
Mar, nosso particular amigo Carlindo Martins Vieira, funcionava como um corolário
de oferta ao santo. A não ser que, à razão da prática de o povo oferecer aquilo
que tinha em casa, se sobreponha a extra-sensorial simbologia da decapitação e
do esfolamento como renovação, pelo sangue derramado. Mas, não é previsível
ir-se por aí. Infelizmente, nos últimos tempos, isto tem sido indecentemente
explorado, principalmente por pessoas que não estudam este fenómeno convenientemente
e de uma forma séria, a ponto de classificarem isto como uma frustração e um
desmoralizante paganismo.
Convém salientar, e
para terminar, que o culto a S. Bartolomeu perde-se no tempo, encontrando-se
vários elementos nesta festividade que nos reportam ao pré-cristianismo,
através da água como símbolo da purificação, e ao cristianismo, através do
baptismo, em muito associado à purificação. E como é inevitável, aparece sempre
um pouco de superstição. Mais que não seja, o culto a S. Bartolomeu teima em
continuar a existir até para conservar o culto da água, um dos elementos
essenciais à própria vida.
Circunstancialmente, Claude Rivière alerta-nos
para esta natural apetência do sobrenatural e misterioso, quando afirma que esta sagração, ambientalmente pura ou
impura, não será por aí que a hipóstase da força colectiva do corpus social e o
rito, constituirão pois uma expressão simbólica dos valores fundamentais que
unificam os membros de uma sociedade. Segundo ele, tal comportamento se
manifesta pela acção de fazer transbordar o religioso para uma noção mais vasta
do sagrado, indicando a sociedade como fonte dessa mesma sacralidade. Ainda a
propósito do culto a S. Bartolomeu, Franquelim Neiva Soares, professor jubilado
da Universidade do Minho, quando, em resposta aos detractores e vilipendiadores
do sentimento e devoção populares, alertara para a remota possibilidade da morte
desta romaria tendo como causa-efeito o materialismo
crescente, o sensualismo desavergonhado e a perda paulatina do sentimento
religioso. E, para que isso não venha a acontecer, sugerira um melhor esclarecimento e mais positiva
orientação; o que urge mais, e quanto antes, é a catequização positiva e
persistente do nosso povo, ainda crente e bom, mas com uma ignorância que brada
aos céus.
Ignorância ou não, acabamos por constatar, in loco, que algo extraordinariamente emocional levava a que aquela
gente se revisse no ancestral culto da água.
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