«…É, por conseguinte, impossível que a alma
possa ser movida, constituindo isto um facto que claramente transparece daquilo
que anteriormente se referiu. Contudo, é necessário que ela seja absolutamente
subtraída ao movimento, em virtude de ser evidente não poder a alma saber
mover-se a si própria.»
Aristóteles
Alma é um termo que deriva do latim Anima, que o mesmo será dizer princípio que dá movimento ao que é
vivo, o que é animado ou o que faz mover. De Anima, derivam diversas palavras
tais como: animal (em latim, animalia), animador, etc. Antes de
Platão, por exemplo, muitas foram as especulações à volta da ideia de alma,
cuja complexidade dessas mesmas especulações levaria esse mesmo filósofo a
defender um dualismo quase radical do corpo e da alma. Há quem afirme que Platão
absorveu o então constituído complexo de especulações sobre a ideia de alma,
acabando por o «purificar». De facto, até ali, o domínio das concepções
populares, sobretudo até ao final da cultura antiga, representava a alma como
um morto (sombra que desce ao seio da terra); “como um alento ou princípio de vida; como realidade aérea que vagueia em redor dos vivos e se manifesta sob a
forma de forças e acções, etc.” – citamos Ferrater Mora, representações essas a
que não ficaram alheios alguns dos pensadores da cultura antiga, e de que damos
exemplo através da “noção homérica da psyche
ou alma-sopro vital como uma imagem
insubstancial do corpo, a que dá vida e ao qual sobrevive numa existência
miserável e exangue no Hades”. Outro dos exemplos vem-nos de Pitágoras, possivelmente
o primeiro grego a encarar explicitamente a alma como algo de moralmente
importante. Por fim, chegamos a Heraclito, apontado como o primeiro a mostrar
com clareza a relevância que o conhecimento da alma tinha para o conhecimento
da estrutura dos cosmos. Assim, poderemos afirmar que o conceito da
“imortalidade da alma” é muito antigo, sendo que as suas raízes remontam ao
princípio da história humana.
Filosófica e
religiosamente, nos tempos que correm, a alma
é definida como a parte espiritual do homem, que se julga continuar viva após a
morte do corpo, podendo o seu destino ser a beatitude celestial, uma temporada
no purgatório ou o tormento eterno. Segundo este ponto de vista, a morte é
considerada como a passagem da alma para a vida eterna, no domínio espiritual.
Santo Agostinho, por exemplo, quando confrontado com a realidade factual da
mortalidade do homem, questionou a simultaneidade desse mesmo homem ser feliz e
mortal, pelo facto de muitos negarem ao homem a capacidade de ser feliz enquanto
vive sujeito à mortalidade. É nesta expectativa que a grande maioria das
religiões, cristãs e não-cristãs, concorda em linhas gerais com a definição da
alma como imortal. O hinduísmo, por exemplo, crê na transmigração da alma
(princípio individual – atman) ao
contrário do budismo, que não crê numa alma como é entendida no ocidente, mas
somente numa sequência de um momento de aparecimento que dá origem ao seguinte,
de forma que a morte representa simplesmente uma nova forma de aparecimento,
como ser humano ou animal, no céu ou no inferno. Por isso, no budismo, fala-se
de renascimento e não de reencarnação.
Alma, movimento ou princípio
de vida? Esta pertinente interrogação coloca-nos outras tantas
interrogações, tendo em conta que ao falar-se do conceito de alma não podemos desassociar-lhe o
sentido material da realidade corpórea. Como diria Ferrater Mora: o sentido da unidade do corpo e da alma é a
relação de uma actualidade com uma potencialidade. Contudo, e em função do
enquadramento do conceito de alma ou psyché – ou mito da alma – no âmbito da ontologia, poderemos afirmar que estes
conceitos sofreram, ao longo da história do pensamento, constantes
transformações. Não é por acaso que muitos são os autores a afirmar que a
questão da existência e da natureza da alma
humana constitui – principalmente, para nós hoje – uma das questões mais
debatidas pelos autores que desenvolvem a perspectiva filosófica das ciências
cognitivas. O “momento-chave” do pensamento disjuntivo,
assente no dualismo ontológico, fundamenta-se na reminiscência, sendo que esta leva à “fuga do mundo”. Esta forma
surpreendente do pensamento, ao contrário da interpretação meramente moral,
apresenta-se-nos com uma significação que vai muito para além dessa mesma
moralidade. A partir do momento que a “verdade” não é deste mundo – mas do
“mundo das ideias” –, que não reside no sensível e nas suas aparências, ela é
ontológica.
A questão ontológica,
posta em relevo por Parménides – para quem o ser era o fundo ontológico dos
fenómenos –, adquire com Platão e com Aristóteles o estatuto de ciência
filosófica fundamental. Através de Aristóteles, com a sua Metafísica, abriu-se e fixou-se os caminhos da Filosofia como
Ontologia, até que com Descartes, a reflexão se orientou não tanto para a
questão do ser como para a questão do saber acerca do ser. Segundo Celestino
Pires, na perspectiva da Ontologia – do ente enquanto ente – há uma procura de
saber o que é o ser, com base no ente real (aquele que exerce o acto de ser) e
não no ente em sentido nominal, comum ao existente e ao possível. Por isso, o
conceito de alma, ao assentar nesse
dualismo ontológico e ao admitirmos que os diversos tipos de alma – vegetativa, animal, humana –,
defendidos por Aristóteles, são diversos tipos de função, facilmente poderemos
concluir que as «partes» da alma em cada um destes tipos de função constituem outros
tantos modos de operação. Seguindo o raciocínio de Ferrater Mora, no caso
concreto da alma humana, o modo de
operação principal é o racional, que distingue esta alma de outras no reino orgânico: Isso não significa que não haja nessa alma outras operações. Pode-se
falar da parte nutritiva, sensitiva, imaginativa e apetitiva da alma, ou seja
de outras tantas operações. Mediante as operações da alma, especialmente da sensível
e da pensante, a alma pode reflectir todas as coisas, já que todas são
sensíveis ou pensáveis e isso faz que, como diz Aristóteles numa fórmula muito
comentada, a alma seja de certo modo de todas as coisas.
Ao especularmos a
relação entre o ser e os entes; o saber acerca do ser; a questão das linhas do
tempo e do ser; a constatação de que o conhecimento vem sobre aquilo que se
realiza; a “verdade” não é deste mundo – mas do “mundo das ideias”; e a alma humana, cujo modo de operação
principal é o racional, por certo que nos confrontamos com a dimensão
ontológica.
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