Friday, October 31, 2014

Alma, movimento ou princípio de vida?!...

«…É, por conseguinte, impossível que a alma possa ser movida, constituindo isto um facto que claramente transparece daquilo que anteriormente se referiu. Contudo, é necessário que ela seja absolutamente subtraída ao movimento, em virtude de ser evidente não poder a alma saber mover-se a si própria.»

Aristóteles

Alma é um termo que deriva do latim Anima, que o mesmo será dizer princípio que dá movimento ao que é vivo, o que é animado ou o que faz mover. De Anima, derivam diversas palavras tais como: animal (em latim, animalia), animador, etc. Antes de Platão, por exemplo, muitas foram as especulações à volta da ideia de alma, cuja complexidade dessas mesmas especulações levaria esse mesmo filósofo a defender um dualismo quase radical do corpo e da alma. Há quem afirme que Platão absorveu o então constituído complexo de especulações sobre a ideia de alma, acabando por o «purificar». De facto, até ali, o domínio das concepções populares, sobretudo até ao final da cultura antiga, representava a alma como um morto (sombra que desce ao seio da terra); “como um alento ou princípio de vida; como realidade aérea que vagueia em redor dos vivos e se manifesta sob a forma de forças e acções, etc.” – citamos Ferrater Mora, representações essas a que não ficaram alheios alguns dos pensadores da cultura antiga, e de que damos exemplo através da “noção homérica da psyche ou alma-sopro vital como uma imagem insubstancial do corpo, a que dá vida e ao qual sobrevive numa existência miserável e exangue no Hades”. Outro dos exemplos vem-nos de Pitágoras, possivelmente o primeiro grego a encarar explicitamente a alma como algo de moralmente importante. Por fim, chegamos a Heraclito, apontado como o primeiro a mostrar com clareza a relevância que o conhecimento da alma tinha para o conhecimento da estrutura dos cosmos. Assim, poderemos afirmar que o conceito da “imortalidade da alma” é muito antigo, sendo que as suas raízes remontam ao princípio da história humana.
Filosófica e religiosamente, nos tempos que correm, a alma é definida como a parte espiritual do homem, que se julga continuar viva após a morte do corpo, podendo o seu destino ser a beatitude celestial, uma temporada no purgatório ou o tormento eterno. Segundo este ponto de vista, a morte é considerada como a passagem da alma para a vida eterna, no domínio espiritual. Santo Agostinho, por exemplo, quando confrontado com a realidade factual da mortalidade do homem, questionou a simultaneidade desse mesmo homem ser feliz e mortal, pelo facto de muitos negarem ao homem a capacidade de ser feliz enquanto vive sujeito à mortalidade. É nesta expectativa que a grande maioria das religiões, cristãs e não-cristãs, concorda em linhas gerais com a definição da alma como imortal. O hinduísmo, por exemplo, crê na transmigração da alma (princípio individual – atman) ao contrário do budismo, que não crê numa alma como é entendida no ocidente, mas somente numa sequência de um momento de aparecimento que dá origem ao seguinte, de forma que a morte representa simplesmente uma nova forma de aparecimento, como ser humano ou animal, no céu ou no inferno. Por isso, no budismo, fala-se de renascimento e não de reencarnação.


Alma, movimento ou princípio de vida? Esta pertinente interrogação coloca-nos outras tantas interrogações, tendo em conta que ao falar-se do conceito de alma não podemos desassociar-lhe o sentido material da realidade corpórea. Como diria Ferrater Mora: o sentido da unidade do corpo e da alma é a relação de uma actualidade com uma potencialidade. Contudo, e em função do enquadramento do conceito de alma ou psyché – ou mito da alma – no âmbito da ontologia, poderemos afirmar que estes conceitos sofreram, ao longo da história do pensamento, constantes transformações. Não é por acaso que muitos são os autores a afirmar que a questão da existência e da natureza da alma humana constitui – principalmente, para nós hoje – uma das questões mais debatidas pelos autores que desenvolvem a perspectiva filosófica das ciências cognitivas. O “momento-chave” do pensamento disjuntivo, assente no dualismo ontológico, fundamenta-se na reminiscência, sendo que esta leva à “fuga do mundo”. Esta forma surpreendente do pensamento, ao contrário da interpretação meramente moral, apresenta-se-nos com uma significação que vai muito para além dessa mesma moralidade. A partir do momento que a “verdade” não é deste mundo – mas do “mundo das ideias” –, que não reside no sensível e nas suas aparências, ela é ontológica.
A questão ontológica, posta em relevo por Parménides – para quem o ser era o fundo ontológico dos fenómenos –, adquire com Platão e com Aristóteles o estatuto de ciência filosófica fundamental. Através de Aristóteles, com a sua Metafísica, abriu-se e fixou-se os caminhos da Filosofia como Ontologia, até que com Descartes, a reflexão se orientou não tanto para a questão do ser como para a questão do saber acerca do ser. Segundo Celestino Pires, na perspectiva da Ontologia – do ente enquanto ente – há uma procura de saber o que é o ser, com base no ente real (aquele que exerce o acto de ser) e não no ente em sentido nominal, comum ao existente e ao possível. Por isso, o conceito de alma, ao assentar nesse dualismo ontológico e ao admitirmos que os diversos tipos de alma – vegetativa, animal, humana –, defendidos por Aristóteles, são diversos tipos de função, facilmente poderemos concluir que as «partes» da alma em cada um destes tipos de função constituem outros tantos modos de operação. Seguindo o raciocínio de Ferrater Mora, no caso concreto da alma humana, o modo de operação principal é o racional, que distingue esta alma de outras no reino orgânico: Isso não significa que não haja nessa alma outras operações. Pode-se falar da parte nutritiva, sensitiva, imaginativa e apetitiva da alma, ou seja de outras tantas operações. Mediante as operações da alma, especialmente da sensível e da pensante, a alma pode reflectir todas as coisas, já que todas são sensíveis ou pensáveis e isso faz que, como diz Aristóteles numa fórmula muito comentada, a alma seja de certo modo de todas as coisas.

Ao especularmos a relação entre o ser e os entes; o saber acerca do ser; a questão das linhas do tempo e do ser; a constatação de que o conhecimento vem sobre aquilo que se realiza; a “verdade” não é deste mundo – mas do “mundo das ideias”; e a alma humana, cujo modo de operação principal é o racional, por certo que nos confrontamos com a dimensão ontológica.

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