“Ian
Hacking é um dos pensadores mais representativos da filosofia da actividade
científica de finais do século XX, dado que foi um dos filósofos que defendeu o
realismo do ponto de vista da prática experimental”
Javier Echeverría
O filósofo canadiano Ian
Hacking, que no pretérito dia 18 de Fevereiro completou setenta e oito
translações, especialista em filosofia da ciência, possui a graduação pela University of British Columbia (1956) e
pela University of Cambridge (1958) –
onde foi estudante de Peterhouse – e o doutoramento em Cambrige (1962), sob a direcção de Casimir Lewy. Ian Hacking é
conhecido por trazer uma abordagem histórica à filosofia da ciência e por ser
um dos importantes membros da Stanford
School, em filosofia da ciência, um grupo que inclui John Dupré, Nancy
Cartwright e Peter Galison. Apesar do seu grande interesse pelas revoluções na
ciência histórica (na sequência do trabalho de Thomas Kuhn), Hacking defende um
realismo acerca da ciência, embora por razões pragmáticas: “o electrão é real
porque os seres humanos usam-no para fazer com que as coisas aconteçam”. Esta
forma de realismo incentiva uma atitude realista em relação às entidades
postuladas pela maturidade das ciências, mas cepticismo em relação às leis
científicas, sendo que para Hacking a realidade tem a ver com a causação e as
nossas noções da realidade formam-se a partir das nossas capacidades de
transformar o mundo. Assim, contamos como real aquilo que podemos usar para
intervir no mundo afectando outras coisas, ou aquilo que o mundo pode usar para
nos afectar, ou seja, ao pensar-se nos nossos corpos e/ou nos nossos
instrumentos científicos e tecnológicos, os mesmos são reais porque com eles
podemos modificar as nossas percepções e nosso ambiente circundante.
Tomando por princípio o
facto de os filósofos discutirem constantemente sobre teorias e sobre a
representação da realidade, mas não dizerem quase nada acerca das
experimentações, a tecnologia e o uso do conhecimento para modificação do
mundo, Ian Hacking reporta-nos ao tempo dos aristotélicos que subestimavam as
experimentações e favoreciam a dedução a partir dos primeiros princípios. Com a
revolução científica do século XVII esses conceitos aristotélicos alteraram-se
por completo. O grande filósofo dessa época revolucionária foi, sem dúvida,
Francis Bacon (1561-1626), cujo pensamento se firmara na convicção de que não
só deveríamos observar a natureza como manipulá-la, de modo a aprender os seus
segredos, alegoricamente, quase como «torcer a cauda ao leão».
Com a revolução
científica apareceram novas instituições, de que é exemplo a Royal Society de Londres, fundada por
volta de 1660. Esta mesma instituição serviu de exemplo e como modelo para
outras academias nacionais em Paris, San Petersburgo e Berlim. Surge também uma
nova forma de comunicação, através das revistas científicas: As primeiras páginas das «Philosophical
Transactions of the Royal Society», tinham um ar curioso. Se bem que este
registo impresso de trabalhos apresentados à Sociedade tinha sempre algo de
matemáticas e teoria, era mais que tudo uma crónica de acções, observações,
experimentações e deduções a partir de experimentações. Segundo Hacking, os
tempos hão mudado, a ponto de ele propor um regresso ao movimento de Bacon, no
qual colocamos mais atenção à ciência experimental. E começa por argumentar que
a experimentação tem uma vida própria.
Tomando como a máxima
tradicional – quase como uma lenda – de que os filósofos estão mais acostumados
ao escritório que ao banco dos artesãos, numa entrega quase cega à teoria em
detrimento da experimentação, aparecem-nos filósofos como Bacon e Leibniz que
mostram que não temos por que ir contra o experimental. Antes de pensar na
filosofia das experimentações deveríamos fazer notar certa diferença de casta
ou de classe entre o teórico e o experimentador. Questionando-se sobre o que é
o método científico e experimental, ou mais concretamente por que deveria haver
o método da ciência, Hacking afirma que não há uma única maneira de construir
uma casa, ou mesmo de plantar tomates. E, quando se pergunta: – Que vem primeiro, a Teoria ou a
Experimentação? Ian Hacking alerta-nos para o facto de que as relações
entre a teoria e a experimentação diferem em diferentes estádios de
desenvolvimento, e nem todas as ciências naturais passam pelos mesmos ciclos.
Há ainda a salientar
que, para Ian Hacking, às vezes há trabalhos experimentais profundos que a
teoria gera na sua totalidade. Segundo o mesmo filósofo, de algumas teorias
importantes saem a experimentação pré-teórica; algumas teorias enfraquecem por
falta de conexões com o mundo real, enquanto algumas experimentações não têm
nada que fazer por falta de teoria; e ainda que possa parecer exagerada a sua
formulação, a história e filosofia da ciência dominadas pela teoria destorcem a
nossa percepção da experimentação. Assim, não se deve pensar, também, que numa
nova ciência a experimentação e a observação precedem a teoria, embora mais
tarde a teoria irá preceder à observação. Por exemplo, a história da
termodinâmica é uma história de invenções práticas que gradualmente levaram a
uma análise teórica. Para Hacking, uma maneira de desenvolver nova tecnologia é
elaborar uma teoria e sua experimentação que por sua vez se aplicam a problemas
práticos. Outra forma é quando as invenções se desenvolvem seguindo o seu
próprio ritmo prático e a teoria se implica de maneira indirecta.
Enumerando algumas de
um sem número de leis experimentais à espera de uma teoria, Ian Hacking afirma
que os resultados experimentais dessa lista estabeleceram-se muito antes de que
houvesse uma teoria que as encarnasse. Os dados estavam lançados, o que se
necessitava era uma teoria que os relacionasse. A diferença entre este caso com
os da óptica e da termodinâmica é que a teoria não provinha directamente dos
dados, senão de ideias muito mais gerais acerca da estrutura atómica. Para o
mesmo filósofo, a mecânica quântica foi por sua vez o estímulo e a solução,
sendo que nada sugeria que a organização das leis fenomenológicas dentro de uma
teoria geral é uma mera questão de indução, analogia ou generalização. A teoria
foi, no final, crucial para o conhecimento, para o crescimento do conhecimento
e suas aplicações.
Dito isto, Hacking
nunca pretendeu formular que as diversas leis fenomenológicas da física do
estado sólido requerem uma teoria – qualquer teoria – antes que se conheçam. E
se no princípio afirmara que a experimentação tem uma vida própria, acaba por concluir
que a experimentação tem muitas vidas próprias.
Em toda esta reflexão –
questionando-nos se teria valido a pena dissertá-la –, e enquanto lesados no
sentir experimental e no realismo à volta da ciência (com doutoramento
parecendo cada vez mais uma miragem), precisamente numa altura em que o Governo
português coarcta nas bolsas para a Ciência e Tecnologia, apetece-nos formular
a teorização da Veritas odium parit!
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