“…ela
sentou-se na única mesa vazia da pastelaria coroada de odores dulcificados, e
pediu, num cicio arrastado de brandura treinada na véspera, uma maçã porta da
loja, descascada. pediu por favor…”
Orlando Ferreira Barros
Se há livro de poesia
que nunca deveríamos ter o atrevimento de o comentar, é precisamente o «picolina»
[numa edição do Centro Cultural do Alto Minho – cronos.poesia] de Orlando Ferreira Barros, dado que ambos
partilhamos da ideia de que a poesia nunca deve ser comentada – e qualquer tipo
de interpretação, é de todo ainda mais descabido –, mas sentida. E se iniciamos
este, só por si já atrevido, deambular literário à volta da afirmação erótica –
como um dia alguém afirmaria –, entendida como arte de se falar dos corpos e da
cópula, por certo que arriscaremos a ser mal interpretados e, quiçá, pondo-nos
a jeito da “rotulação” de assumirmos uma certa marginalidade. Mas não, ao assumirmos
o nosso gosto pela poesia erótica e satírica, que já vem dos anos setenta do
século passado, quando foram publicadas duas antologias (Natália Correia e
Fernando Ribeiro de Mello), sem que isso signifique perversidade, foi com o
maior agrado que recebemos este maravilhoso livro «picolina» do Orlando Ferreira
Barros, onde o mesmo denuncia a «casta» de anti-debochados, conservadores de
uma espécie de inquisidores à má consciência, de dedo em riste, disfarçáveis em
“lirismo enamorado”, mas mais “putas” que as próprias putas: “prefiro o lirismo
dos marginais, / dos doidos, / dos piratas, / dos putos reguilas / o lirismo
dos bêbados / dos debochados / dos amantes sob as tílias / dos que fazem amor
nos rochedos / dos fora-da-lei / dos atoleimados, / das putas / dos que
caminham sem direcção, / dos esfarrapados, / desses que falam sozinhos / em
íntimas disputas / que o lirismo seja uma perturbante desinquietação” – não há
pachorra, diz-nos Orlando Ferreira Barros, do qual subscrevemos, fazendo nossas
as suas palavras!
Atendamos à biografia
de Orlando: em 1942 nasceu em Leiria; em 1960 foi estudar para Lisboa; em 1961
apaixona-se irremediavelmente (tal como a Espanca); em 1969 instala-se em Viana
do Castelo (neste momento acha que dali nunca saiu); em 1972 nasce a sua filha
loira; em 1973 começa a escrever a sério; em 1988 nasce a sua filha morena; em
2010 deixou de ver os canais portugueses de TV; em 2011 nasce o seu neto macho;
em 2012 nasce a sua neta fêmea; acorda todos os dias às 6h30 com a chegada do
padeiro. Se ele se atrasa, os melros tomam o seu lugar; vive feliz na fronteira
Meadela/Perre (numa solidão acompanhada) com a família e mais duas canadianas
que juraram nunca abandoná-lo; em 2013 fez as contas e somou seis prémios
literários; em 2014 continua a escrever, o que lhe dá sentido a vida; em 2020
espera continuar a escrever (e, talvez, a somar mais uns prémios); em 2026,
segundo uma cigana decifradora das linhas da palma da mão….. (??????) –, e fácil
será perceber a facilidade com que dá voz a umas tantas “Esperança de Jesus”, em
cujos pinceis e guaches – paula rego preparando-se para pintar a velha puta – “recusarão
a linha das fêmeas disformes, as suas bocas exalando o bafo podre das brisas
mortuárias com que tenho enchido as telas brancas. Nem desenharão o perfil das
barregãs de cócoras, matando como assassinas minadas por desejos demoníacos ou
coçando-se como cães subterrâneos que se acoitam dos homens inconfiáveis”.
Porque,
irremediavelmente, gostamos de tudo o que Orlando Ferreira Barros escreve, não
poderíamos deixar de apanhar o seu “autocarro para as nuvens” (qual alegoria por
ele tomada a Nuno Júdice), e tornarmo-nos cúmplices na defesa da “velha puta”:
“até horas tardias / borboletas vadias / sobrevoam a tua cabeça / marcavam a
presença / de ti, direita e absoluta / Olha, vai ali a Picolina / Quem é? / A
puta / Despejam-te insultos, / provocações / à conta da moralidade / feita de
miopia curta / como se tivesses forjado / o pecado original / e fosses a
vergonha / o anjo negro, malfadado, / da púdica cidade / Olha, vai ali a
Picolina / Quem é? / A puta / recusaste lupanares / bordeis rascas de putedo, /
abjectos lugares / onde à mulher / é proibido um segredo / uma emoção, uma
ternura, / o que lhe aprouver (…)” – essa Esperança
de Jesus que consumiu a vida deitada, sem pudor e sem fé, à luz
regeneradora da lua, e que não vai formosa, não, mas vai segura, e de pé…
lexical em que deveríamos, de contínuo, ter usado aspas, visto que extraído da
inspiração do autor.
Porque seria extrema(mente)
difícil expressarmos este nosso sentir – pela leitura, claro! – ou simples
forma de mascarar hábitos menos castos, não queríamos deixar de terminar, por
forma a não pressionarmos a desnecessárias interpretações, que em pouco ou nada
terão a ver com o comportamento efectivo do seu autor, citando José Martins
Garcia, em jeito de prefácio, à edição da «Poesia Portuguesa Erótica e
Satírica, séculos XVIII-XIX» de Fernando Ribeiro de Mello: “Tal como o doente
mental resiste muitas vezes à cura por «pudor», a nossa sociedade não consente
que lhe toquem nas mazelas. A atitude dos mentores é a de fechar os olhos e
fingir que não há nenhum problema sexual nesta exemplar «colónia» (…) Se outra
coragem nos não consentem, assumimos a coragem da marginalidade”. Obrigado
Orlando Ferreira Barros, pela tua saudável marginalidade. Bem que a dona Esperança de Jesus – grande
elevação de trato – merece que a tua mão desobediente, quando “desatado o nó
górdio do problema / roça o lápis Viarco / mordido na ponta e por afiar…”,
escreva mais um poema.
Nota máxima!
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